-
Texto de PINTO GARCIA
Fotos de HENRIQUE MOREIRA
Um diálogo com o prof. dr. Rui Luís Gomes é uma tarefa apaixonante para o jornalista. Pela lição de humildade, pela afabilidade do novo reitor da Universidade do Porto, pela sinceridade das opiniões, pela emoção com que ele evoca tantos momentos difíceis que lhe fez viver o antigo regime, que o levou a procurar fora de Portugal a possibilidade de viver, de conviver e, sobretudo, de ensinar.
Regressado ao Porto após uma longa e forçada ausência, o prof. dr. Luís Gomes começou a viver uma outra vida.
O que sinto é tão extraordinário que não consigo traduzir por palavras. Depois de ter estado afastado do meu país desde a década de 60 voltei e fui recebido de tal maneira que não posso conter a emoção. Voltar a entrar, agora como reitor, numa Universidade de onde fui expulso há precisamente 24 anos, apenas pelas atitudes que tomei como cidadão, e entrar por inidativa dos estudantes, é acontecimento que me trouxe uma alegria extraordinária. Posso mesmo dizer, se isso for possível, que a melhor reparação por tudo aquilo por que passei. E quase diria que foi bom tudo o que passei para agora ter esta sensação extraordinária.
Mal soube do 25 de Abril, o prof.dr. Rui Luís Gomes passou a encarar o regresso a Portugal como uma das necessidades da sua vida. Solicitado por amigos, ele embarcou, de avião, e quase de um fôlego fez Recife-Porto, para reencontrar a sua casa da Rua da Restauração, onde sua irmã contava os dias na esperança de urn regresso e conservava tudo religiosamente nos seus lugares. Até na lista dos telefones se mantinha o nome de Rui Luís Gomes.
Ora foi numa das salas dessa casa onde Rui Luís Gomes nasceu, em 5 de Dezembro de 1905, que tivemos oportunidade de conversar com ele, num extraordinário serão, onde toda a sua vida foi evocada, naturalmente. A sua infância, a sua carreira como professor universitário, as perseguições políticas de que foi alvo, a sua expulsão da Universidade, os interrogatórios da P.l.D.E., a sua candidatura a chefe de Estado, a sua posição contra a guerra colonial, a sua partida para o exílio.
Quando estava para terminar o curso liceal, no Liceu de Rodrigues de Freitas, que era na Rua de S. Bento da Vitória, meu pai foi convidado pelo presidente da República, António José de Almeida, para reitor da Universidade de Coimbra. Fomos todos para lá. E terminei o curso do liceu justamente em Coimbra, no Liceu de José Falcão, tendo em seguida entrado para a Universidade em 1921, para fazer o curso de Matemática. Ao fim de dois anos porém, meu pai pediu a exoneração e regressou ao Porto. Eu fiquei, até concluir o curso, em 1926. Doutorei-me e continuei em Coimbra, até 1929, altura em que vim para o Porto, como assistente. Quatro anos depois, fiz concurso para professor titular da Universidade do Porto, na sala da biblioteca onde agora acabo de ser empossado como reitor, E estive aqui como professor até 1947, até ser demitido. A causa próxima dá minha demissão foi a atitude que tomei, conjuntamente com o meu assistente Laureano Barros, em relação à prisão, pela P.l.D.E., de uma aluna da Faculdade de Ciências, Nazaré Patacão. Os dois dirigimos uma carta ao director da Faculdade, entendendo que o Conselho Escolar devia reunir e considerar o problema. O Conselho não reuniu e o director chegou mesmo a propor-me que retirasse a carta, pois em caso contrário teria de dar conhecimento dela ao ministro da Educação. Eu não retirei a carta, e o assistente viu rescindido o seu contrato. Pouco depois, eu era afastado do serviço, por um telegrama do então ministro da Educação, Fernando Pires de Lima. Fui suspenso do exercício e fiquei sem vencimento. Abriram um processo em que fui convidado a depor. Perguntei se podia ou não exercer as liberdades fundamentais concedidas pela Constituição. O juiz propôs uma pena de seis meses de suspensão. Recorri. O processo chegou ao Conselho Permanente de Acção Educativa, que me aplicou a pena de demissão. Recorri para o Supremo Tribunal Administrativo, mas perdi todos os recursos, acabando por ser "legalmente" demitido em 1948. Continuei, porém, em Portugal, até 1958, até ver que já não tinha possibilidades de exercer a minha actividade profissional. Recebi, entretanto, convites para a Argentina, e parti para lá, com um contrato por seis meses. Admitia então a possibilidade de poder regressar, mas em vão. Fiquei três meses e meio na Argentina.
Até à partida para a Argentina, o prof. dr. Lufs Gomes revela-se um político de grande envergadura, sendo constantemente perseguido pelas autoridades, em especial pela P.l.D.E. Isso, no entanto, não o impediu de ter apresentado a candidatura à chefia do Estado e de ter sido imobilizado por uma manobra política do regime salazarista, que sentiu o perigo que ia correr.
A minha actividade política está relacionada com a minha actividade profissional. Com efeito, ia encontrando na minha frente problemas que exigiam tomadas de posição. Assim, em 1945, a seguir ao fim da guerra mundial, regista-se um surto de democratização em todos os países. Em Lisboa toma fôlego um grande movimento, reclamando as liberdades fundamentais, que se chamaria M.U.D. Movimento da Unidade Democrática. Participo nele. Regresso ao Porto e, nesta casa, sou procurado pelos drs. António Macedo e Cal Brandão, que me pediram para ser o primeiro signatário de um documento dirigido ao governador civil, para autorizar uma sessão. Fizemos essa sessão no Olímpia. Foi um êxito.logo seguido de um movimento de recolha de listas. E começou a repressão policial, que procurava apanhar as listas. Fomos chamados à Policia, mas recusámos entregar as listas. Fomos presos. A minha primeira prisão foi essa. Uma semana. Transferiram-nos para Lisboa. Isto em 1945. Soltaram-nos e regressei ao Porto. Voltei a ser preso durante o funeral do dr. Abel Salazar. No tribunal apresentei-me sem gravata, os advogados presentes fizeram o mesmo. O juiz não quis vir à sala. Foi um pequeno escândalo. Voltei ao Aljube sem ser julgado e acabaram por me pôr em liberdade, deixando-me à porta de casa. A minha tomada de posição continuou,
Em 1949, na candidatura do general Norton de Matos, fiz parte da comissão. O M.U.D. foi então considerado ilegal e deu lugar ao M.N.D., Movimento Nacional Democrático, do qual era presidente da Comissão Central. Nova prisão, por uma tomada de posição em relação à N.A.T.O. Dois anos depois, em 1951, morre o general Carmona. O M.N.D. apresenta-me como candidato à presidência da República. Nos termos da legislação então vigente, as candidaturas teriam de ser apresentadas ao Supremo Tribunal de Justiça, subscritas por duas centenas de eleitores. A princípio tivemos dificuldade em conseguir assinaturas. Depois, começaram a surgir em ritmo fantástico, de tal modo que conseguimos mais de 600, em vez das 200 do mínimo. Fomos ao Supremo Tribunal, acompanhados pelo nosso advogado, dr. Luís Francisco Rebelo. Era a única candidatura apresentada. Ninguém mais apareceu no prazo legal. Teria de ser proclamado presidente. Aí veio a manobra. O governo salazarista ficou desorientado e recorreu à modificação da legislação, em plena campanha eleitoral. E as candidaturas passaram a ter de ser revistas pelo Conselho de Estado, que era um órgão do governo. Apareceram então as candidaturas de Quintão de Meireles e de Craveiro Lopes. A minha foi rejeitada. Mesmo assim, ainda fizemos duas sessões eleitorais, uma em Lisboa e outra em Rio Tinto, e nesta todos fomos agredidos barbaramente. Mas não desisti.Em 1951, em face dos casos de Goa, Damão e Diu, a Comissão Central do M.N.D. tomou posição, elaborando o primeiro documento político que envolvia o problema colonial português. Levantámos o problema da autodeterminação. Nenhum jornal teve possibilidades de dar a notícia. A Censura cortou tudo. E fomos todos presos. Estivemos, os membros da Comissão Central, um ano na P.I.D.E., no Porto. Chegaram a pedir 50 anos de prisão, por traição à Pátria. No julgamento, a pena veio para dezoito meses. Mas o julgamento foi anulado e repetido, e apanhámos dois anos, cumpridos, um deles, na Colónia Penal de Santa Cruz do Bispo, o que constitui para mim uma experiência humana extraordinária para o meu património de atitudes cívicas. Tiraram-nos também os direitos políticos por uma vintena de anos. Depois disso, decidi partir, sair daqui. Levei minha mulher, e fomos para a Argentina e, depois, para o Brasil, onde ela ainda se encontra.
O prof. dr. Rui Luís Gomes veio para ficar. Para viver no Portugal diferente depois do 25 de Abril. Mas tem compromissos que quer respeitar. Ele voltará, no dia 19, para o Recife, para continuar as aulas que interrompeu, até, possivelmente ao fim de Junho. Só depois, na companhia da esposa, regressará de vez à sua terra natal, para dirigir os destinos da Universidade do Porto.
Na posição de reitor estou interessado em estabelecer um clima de confiança entre jovens, professores e funcionários,e tenho a certeza que, dedicando-me apaixonadamente a esses problemas, como de resto sempre tenho feito, e com a colaboração dos jovens e de professores de alto valor científico, que felizmente temos muitos, alguns que pertenciam à Universidade e outros que estão fora, seremos capazes de cumprir a tarefa que nos espera, de transformar a Universidade portuguesa numa autêntica escola de investigação científica, com um ensino actualizado, e numa escola de convivência. Isso é fundamental. É nisto que estou inteiramente absorvido. E feliz por saber à frente da Faculdade de Letras um homem que há muito devia ter sido chamado a esse cargo, o dr. Óscar Lopes, um dos mais notáveis críticos da literatura portuguesa e um cidadão extraordinário. Já propus que fosse nomeado director da Faculdade de Economia, um investigador e notável economista, o dr. Armando Castro, que também já devia estar no cargo desde a criação da Faculdade no Porto. E vou propor para outras faculdades nomes com prestígio, como o prof. dr. Amândio Tavares, para Medicina, o prof. dr. Arala Chaves, para Ciências. Acho que isto é um começo de primeira ordem, para esta máquina poder funcionar. Os directores das escolas têm como primeira condição a de possuírem a confiança dos alunos e de possuírem um "curriculum" científico e cívico de elevado nível. Apoiados nestas medidas positivas, será com autoridade através da isenção que poderemos resolver algumas dificuldades, impormo-nos à juventude. Isso merece que a juventude venha agora ao nosso encontro, colaborando, cedendo aqui e ali, tal como nós, para chegarmos a uma posição de equilíbrio, para que a Universidade possa ser uma escola de trabalho e de convivência. Não sendo assim, a Universidade não tem sentido.
Copiado de Rui Luís Gomes: a luta pela Liberdade não foi inglória
Universidade do Porto: Arquivo Noticioso da Universidade do Porto
«Entrevista com o novo Reitor da Universidade do Porto, Dr. Ruy Luís Gomes, contendo diversas fotografias suas e recordando o seu percurso de vida, desde a infância até ao exílio do país e manifestando alguns dos desejos que gostaria de concretizar durante o seu mandato à frente da Universidade do Porto. (Revista Flama, 1974-05-24)»