Wednesday, October 06, 2010

A REVOLUÇÃO REPUBLICANA DE 31 DE JANEIRO, por Ruy Luís Gomes (3)

ALIMENTAÇÃO

O que acabámos de referir é já suficiente para inferir que deviam ser muito más as condições de alimentação da maioria da nossa população.
Mas é possível traduzir nalguns números, e sempre em relação com a Europa Ocidental, a insuficiência da dieta alimentar do Povo Português, especialmente pela sua carência de proteínas de origem animal.
Na verdade, o conhecido economista Anselmo de Andrade (ver [1], Cap. VII, pág. 66), diz concretamente o seguinte: «mesmo que o consumo de todas as carnes seja de 96 milhões de quilogramas em todo o País, Continente e Ilhas, conforme está calculado, não caberiam a cada habitante do Continente senão 18 kg por ano, ou 50 gramas escassos por dia, menos que a ração dos presos na França e na Alemanha, que é de 50 gramas». E é preciso atender, ainda, a que esta média não correspondia a um consumo uniforme por toda a população, mas sim a um mínimo para a grande massa ao lado de um máximo, verdadeira superalimentação, dos economicamente fortes. Até se importava gado (para garantir a alimentação desta minoria), como se verifica, em concreto, pela estatística de 1881 (ver [3], pág. 136). E a produção agrícola era sempre insuficiente para as necessidades da população, havendo naquele ano um défice de produtos alimentares da ordem de 44 % do total das importações (ver [3], pág. 127). Para tornar menos incompleta esta visão retrospectiva das condições de vida do nosso povo, conside­remos agora as tendências dominantes da

DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO POR PROFISSÕES

Fixemos a nossa análise (à maneira do economista Colin Clark) nos três sectores (ver, por exemplo [4], pág. 1765):
Primário — pesca, floresta e agricultura;
Secundário — indústrias extractivas, energéticas e de transformação;
Terciário — transportes, comércio, bancos, seguros, admi­nistração, serviços privados.
É sabido (ver [4], pág. 1765) «que nos países industria­lizados (como eram e são os da Europa Ocidental) e até à Primeira Guerra Mundial, houve uma redução acentuada do sector primário e, paralelamente, aumento em proporções idênticas do secundário e terciário. E só a partir de 1918 é que se dá um afrouxamento no ritmo de aumento do secun­dário acompanhado de uma predominância do terciário».
«O primeiro período corresponde à fase inicial, de instalação, do capitalismo: formação de quadros (terciário) e massa operária (secundário) por maneira a garantir uma produção conducente a lucros elevados».
«O segundo é já o da maior produtividade sem aumento de produção, em que se utilizam os aperfeiçoamentos técnicos e a concentração industrial para conseguir o menor preço sem aumento e, se possível, com diminuição da massa operária (fase descendente do secundário). Isso obriga a desenvolver os serviços não directamente produtivos, criando assim uma classe média assalariada (terciário), que funciona de força de inércia, resistente, socialmente resistente, em face das massas operárias, progressivas por natureza e neces­sidade».
A preocupação de aumento de produtividade é, pois, inseparável de um certo conceito de progresso técnico como elemento de ordem (resistência) social. Vejamos agora como as coisas se passaram entre nós.
Embora o nosso país ainda hoje não pertença à Europa Ocidental, considerada esta como o conjunto dos países industrializados da Europa de economia capitalista (1), é um facto que também nele se verificou, no decorrer do último quartel do séc. XIX, uma redução gradual do sector primário.
Segundo números citados por Anselmo de Andrade ([1], Cap. XXI, e, em especial, pág. 320), de cada mil habi­tantes, estavam empregados na agricultura (sector primário), 800 em 1870, e apenas 610 em 1890. E ele previa uma nova diminuição para 1900, juntamente com um aumento cada vez mais acentuado da percentagem de pequenos comer­ciantes e profissões liberais (uns e outros do sector terciário).
O censo de 1900, que só foi publicado em 1906, mostra, porém, que de 1890 para 1900 o sector primário não sofre diminuição (ou até aumenta), quer o consideremos em relação à população geral ou apenas em relação ao total das pessoas exercendo uma profissão (população activa).
Com efeito, no quadro da população geral temos:
População: 5 049 729 (1890), 5 423 132 (1900)
Primário (2): 3 088 610 (1890), 3 367 199 (1900)
e são
Primário: 1 562 934 (1890), 1 529 035 (1900)

os números em termos de população activa. Mas se formos comparar os diferentes elementos constitutivos dos sectores secundário e terciário, então, o que apresenta maior percen­tagem de aumento, distanciando-se de todos os restantes, é precisamente o comércio. Quanto às profissões liberais, têm uma percentagem de aumento equiparável à da indús­tria, ambas muito longe do comércio.
Efectivamente, os censos de 1890 e 1900 dão (quadro da população geral)

Indústria: 905 017 (1890), 1 034 203 (1900)
Comércio: 244 714 (1890), 332 289 (1900)
Profissões liberais: 83 033 (1890), 95 160 (1900)
e (quadro da população activa)

Indústria: 452 071 (1890), 459 035 (1900)
Comércio: 103 254 (1890) 141 795 (1900)
Profissões liberais: 29 349 (1890), 35 156 (1900)

Quer dizer, enquanto que o comércio apresenta um aumento da ordem de 35%, as profissões liberais não vão além de 14% (quadro da pop. geral) e 19% (quadro da pop. activa), e a indústria anda por 14% (quadro da pop. geral), e cai para 1,5 % no quadro da população activa!
Em resumo, as características da evolução da popu­lação portuguesa no decénio 1890-1900 são: estacionariedade do sector primário, quase estacionariedade do secun­dário (indústria), grande aumento do comércio, principal parcela do terciário (3), e também dos transportes (outra parcela do terciário).
Conclui-se, pois, que no momento Ultimatum — 31 de Janeiro, estamos perante uma Europa Ocidental, industria­lizada, expansionista, em graves condições de dependência económica: dois terços da população empregados na agricul­tura, mas numa agricultura com uma produtividade de trigo quase um quarto da média dos valores de França e Inglaterra (ver [21]), e uma indústria que quase não conta.
Quer dizer, em Portugal a minoria dominante apro­veita o progresso técnico da Europa Ocidental, não para aumentar constantemente a produção em correspondência com um aumento de procura interior, como sucederia se o nível de vida do Povo aumentasse também, mas sim para sobrepor um aumento de produtividade, ou seja, grandes lucros, a uma economia depressiva (subconsumo).
A política de Fontes, ou melhor, a chamada Regene­ração — grande desenvolvimento da viação ferroviária, acti­vidade bancária (em 1873 e 1874 chegaram a formar-se dois bancos por mês (4), etc. — corresponde precisamente a essa sobreposição, caracterizada por aumento do terciário (sobre o secundário) em regime de subconsumo do País em geral.
Podemos dizer que a Regeneração é o equivalente nacional de um certo conceito de progresso como factor de ordem social.
As considerações anteriores são todas nesse sentido, e podemos também recordar que o próprio Fontes andou efectivamente interessado em assegurar essa resistência, preo­cupado com as repercussões entre nós de certos aconteci­mentos políticos na França e na Espanha. Falando na Câmara dos Pares em 19 de Abril de 1871, dizia: «agora que os revolucionários de todos os países procuram desprestigiar o princípio da autoridade em todos os seus representantes, desde os mais elevados até aos mais pequenos, incumbe aos poderes públicos, no desempenho da sua missão, e para salvar a liberdade, que é inseparável da ordem, protestar contra as aberrações dos verdadeiros princípios em que se funda a sociedade civil e política, e pôr uma barreira invencí­vel a quaisquer manifestações, que possam pôr em perigo tão altos e respeitáveis interesses e direitos» (ver [5], pág 400).
E o aparecimento de unidades fabris de certa categoria, nomeadamente na fiação de tecidos de algodão (5), a partir de 1880 (6), ia ser novo factor de ordem pelo progresso, quer dizer, desenvolvimento de produtividade.
Encontramos em [1], pág. 314, estes elementos: «O desenvolvimento dado às nossas indústrias não acom­panha o da população industrial. De 1890 para 1898, o número de operários nas principais indústrias apenas aumenta 4 mil, tendo passado de 13 mil homens e 8 mil mulheres a 315 mil e 10 mil, respectivamente. Houve, porém, indústrias onde o número de operários se reduziu, sendo de notar que uma delas foi a dos tecidos, certamente a mais desenvol­vida. Nessa indústria, desceu o número dos operários de 12 mil a 9 mil, e subiu a força dos motores de 1847 cavalos a 4937».A crise do Ultimatum — 31 de Janeiro vem, assim, coincidir com a sobreposição de produtividade com regime de economia depressiva, que provocou uma ponta na emi­gração para o Brasil e maior procura de lugares no terciário.
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(1) É a classificação adoptada nos relatórios publicados pelas Nações Unidas, nomeadamente no ano de 1954.
(2) Faltou incluir os números (dezenas de milhares) relativos à pesca e caça.
(3) Em 1950 a distribuição dos indivíduos com profissões pelos diferentes sectores era: quase metade no primário, 29 % no terciário e só 23 % no secundário, como consequência de um exagerado afluxo de capitais para aquele (ver Diário de Lisboa, 13-12-1955). Então como agora largo desenvolvimento do terciário e nomeadamente do comércio e trans­portes.
(4) Ver [5], pág. 405.
(5) Citamos esta pela sua importância.
(6) Em 1881 já se destacavam as fábricas Vizela, Companhia Fiação Portuense e Salgueiros (ver [6], pág. 167).