Friday, January 20, 2006

Excertos de "A revolução republicana de 31 de Janeiro"


A revolução republicana de 31 de Janeiro

A meu Pai
Ministro do Governo Provisório, que, na grandiosa sessão comemorativa da implantação da República, realizada no Porto, na noite de 5 de Outubro de 1955, afirmou a sua confiança inabalável na capacidade política do Povo Português.


(...)
Quanto ao horário de trabalho ia de sol a sol e às vezes ainda entrava pela noite dentro.
Mas fixemos bem esta passagem do inquérito (...): “Crianças de ambos os sexos, desde os 7, desde os 8, desde os 9 anos, são obrigadas a um trabalho que começa com o dia e, se de verão acaba com ele, de inverno portrai-se até às 8 horas da noite. Em regra, tudo é analfabeto, habitualmente as mulheres passam de mão em mão. Um fabricante disse-nos que em vendo um operário a ler punha-o na rua, outro que na sua fábrica as mancebias começavam aos 13 anos. Confessou-se-nos tudo isto de um modo natural e simples”.
Este trecho mostra que os operários não eram tratados como seres humanos; comprava-se-lhes a força de trabalho como qualquer outra mercadoria obedecendo à lei da oferta e da procura. Aquela era abundante e, portanto, barata (...).
Mas os operários reagiam contra este regime de trabalho por intermédio das suas associações de classe, da sua organização partidária, socialista, e fazendo os seus movimentos reivindicativos do horário das 8 horas.
(...)
Em 1888, rebenta outro grande movimento de paralização de trabalho, como resistência a uma disposição de lei, da autoria do ministro da Fazenda, Mariano de Carvalho, pela qual os operários tinham de pagar uma licença para poderem trabalhar (...). Era, afinal, um processo de arranjar receitas para o Estado, quase do mesmo género de um projecto de capitar cada emigrante em vinte mil réis de multa, certamente com o pretexto de diminuir a emigração (...).
(...)
O défice é, efectivamente, outra constante da política da minoria dominante, atingindo na gerência 1889-1890 a soma impressionante de 14 950 contos juntamente com uma dívida pública de valor nominal de 592 mil contos (...).
(...)
E a preocupação demagógica de apresentar um orçamento equilibrado dentro de um tal condicionalismo económico conduzia a coisas como esta: “A associação comercial de uma importante cidade portuguesa sugeriu o conspícuo alvitre de que se passe a capitar cada emigrante em vinte mil réis de multa” (...); do mesmo modo que, em 1888, o ministro da Fazenda, Mariano de Carvalho, recorreu ao célebre decreto das licenças como fonte de receitas!
No próprio ministério das Finanças eram tais os malabarismos para se conseguir esconder (...) o défice permanente, que “se inventou uma palavra para designar o crime de falsificar a escrituração pública, e que se chama amavelmente rindo, de orçamentologia”. E o insuspeitíssimo Anselmo de Andrade exprime-se em termos idênticos – “cada orçamento novo é sempre, entre nós, uma máscara também nova num perpétuo carnaval financeiro” (...).
Na realidade, o que mantinha a classe dominante era a máquina aspirante-premente dos impostos e empréstimos, uns e outros arrancados, de facto, ao Povo Português – trabalhando aqui ou no Brasil como emigrante – mediante as facilidades dadas à penetração do capital estrangeiro.
Consequentemente, quando havia uma redução substancial na remessa de cheques dos “brasileiros”, como sucedeu a seguir à proclamação da República do Brasil em 15 de Novembro de 1889, ou se dava uma retracção de crédito junto da finança da Europa Ocidental, por incidência da própria política internacional, entrava em crise o mecanismo em que se apoiava a minoria dominante.
E, actuando simultâneamente as duas causas, podia chegar-se à bancarrota...
Foi precisamente o que sucedeu em 1891-1892: por um lado, a guerra civil no Brasil, em que Portugal apoiou os elementos mais reaccionários, criou dificuldades ao envio dos cheques via Londres e, por outro, a falência da casa Baring Brothers, banqueiros da Monarquia, fechou-nos as portas a novos empréstimos. Deu-se a derrocada financeira.
(...)
Mas se é verdade que, relativamente a um país de economia depressiva como a nossa, a Inglaterra, a Bélgica, a Alemanha, a França, países industrializados, se comportavam afinal como componentes de um todo, absorvente, a Europa Ocidental, também não podemos abstrair dos conflitos que necessariamente surgiram entre eles e connosco. Todos precisavam de abrir caminho à sua expressão imperialista, que efectivamente se concretiza, só no último quartel do séc. XIX, seu período áureo (...).
(...)
Luciano Cordeiro (...), discursando na Câmara dos Deputados, na sessão de 14 de Junho de 1885, em defesa da posição tomada como principal perito da delegação portuguesa à conferência de Berlim, sintetizava assim a questão do expansionismo da Europa Ocidental: “Excesso de população, excesso de produção: estes dois factores fundamentais de colonização moderna, agitavam fortemente a economia e a política do velho mundo europeu, à maior parte da qual, diga-se de passagem, faltava um terceiro termo, que há-de emparelhar-se àqueles, e que nós possuímos, sem ter sabido aproveitá-lo até agora: excesso de territórios”.
E é curioso verificar como estas palavras de há setenta anos contêm já o essencial da célebre teoria do espaço vital, invocada sistematicamente por Hitler...
Na realidade, não era a Europa Ocidental como conjunto de países com os seus problemas nacionais, autênticos, que estava em causa; nem o expansionismo imperialista pode ser justificado com o argumento de necessidade imperiosa de colocar um excesso de população e um excesso de produção.
O expansionismo imperialista foi imposto por um certo tipo de economia, o capitalismo, para conquistar novos mercados e novas fontes de matérias primas e, a partir dessas conquistas, obter uma exploração económica mais vantajosa ainda.
A argumentação de Luciano Cordeiro envolve, pois, uma redução do imperialismo a uma política, compreensiva, de salvação nacional (para cada um dos países industrializados); quando é certo que o imperialismo foi apenas uma política, violenta, de salvaguarda dos interesses da classe economicamente dominante de cada um deles.
(...)
Efectivamente, vivendo o nosso país em regime de economia depressiva, como já tivemos ocasião de mostrar, havia uma cisão profunda entre os interesses da grande maioria da população – sector colonizado – e os interesses da classe dominante – sector colonizante.
Se, para os primeiros, os progressos do imperialismo europeu se traduziam num acréscimo de pressão colonizante, para os segundos, eles implicavam um perigo muito grave – o e por a nu os seus compromissos com o próprio imperialismo que eram obrigados a combater... Tenhamos bem presente que era um mesmo conjunto de imperialismos – A Europa Ocidental – que actuava em África e ao mesmo tempo fazia a penetração económica na metrópole.
(...)
O Ultimatum, de 11 de Janeiro de 1890, situava-se efectivamente “na onda dos empreendimentos modernos”, forma velada de designar o imperialismo inglês.
(...)
Perante a acção da Inglaterra, a classe dominante encontrou-se inteiramente isolada da Nação.
Dá-se então uma verdadeira mobilização da consciência nacional, realizando-se em todo o País, e especialmente em Lisbos, manifestações grandiosas, em que participam largamente a pequena burguesia, os estudantes e as massas operárias. E essas manifestações dirigem-se ao mesmo tempo contra a Inglaterra e contra o governo da monarquia.
Este, porém, aceita as condições impostas pelo imperialismo inglês, e mudando embora de representantes, inicia uma série de medidas antidemocráticas, de repressão das manifestações, mostrando assim que a sua maior preocupação era impedir que o Povo reduzisse a uma causa única – o imperialismo – os acontecimentos em África e a sua situação de miséria na metrópole.
Fazer essa redução, dar esse passo no sentido do esclarecimento das verdadeiras causas da economia depressiva do País, seria tomar consciência das ligações de dependência entre a minoria dominante e o próprio imperialismo e, portanto, por em dúvida a legitimidade da Monarquia como intérprete do interesse nacional, abrindo caminho à revolução.
Mas, num país subdesenvolvido como o nosso, com tão reduzida percentagem da população empregada no sector industrial e com uma pequena burguesia ainda tão desinteressada dos grandes problemas filosóficos e científicos da civilização industrial, num país assim distanciado da Europa Ocidental, não era de esperar que se fosse mais longe, até à transformação de um sentimento colectivo, nacional, num movimento revolucionário contra a classe dominante. E, efectivamente, o Ultimatum não foi seguido da queda da Monarquia.
(...)
Basílio Teles procurou uma explicação para a dissolução tão rápida, da Liga Patriótica do Norte, e não deixa de ser interessante registar aqui as suas palavras: “Isto significa uma grande verdade, tantas vezes esquecida pela História – que nas épocas de aguda crise, só um partido, pela limpidez dos seus princípios, pela força da sua organização e disciplina, é susceptível de salvar uma pátria, refreando os insofridos, desviando os pusilânimes, abatendo os intrigantes”.
(...)
E, para que a Revolução triunfasse, faltou apenas a unidade das forças democráticas e das forças operárias.
(...)
Ora, o problema da unidade das forças democráticas e das forças operárias era anterior à revolução, e o que se impunha era uma plataforma prévia de objectivos de modo a chegar a um só programa. E, para isso, era indispensável transpor as divergências entre umas e outras, conquistando o apoio das forças operárias para a obtenção das liberdades democráticas e inscrevendo no manifesto das forças democráticas a principal reivindicação daquelas, ou seja, o regime das oito horas de trabalho.
Não se tendo feito esta unidade antes da revolução, dificilmente se conseguiria, como não se conseguiu, a intervenção das massas trabalhadoras, na altura em que o plano revolucionário já demonstrava as suas insuficiências. Mas, o que se impõe cada vez mais é a actualidade de 31 de Janeiro de 1891.
Na verdade, trata-se de uma revolução em que a luta pela independência nacional e pela liberdade anda estreitamente ligada à luta contra o imperialismo. E, por outro lado, constitui um exemplo bem significativo de como a unidade das forças democráticas e das forças operárias é condição essencial do triunfo do Povo.
Nisto consiste o seu valor de antecipação, o seu grande interesse.

Edição do autor, 1956.
Ver: