José Ribeiro Albuquerque, um homem grande [por Sérgio Ribeiro]
© Família de José Ribeiro de Albuquerque
Agradecimentos a Rui Albuquerque que facultou as digitalizações
Agradecimentos a Rui Albuquerque que facultou as digitalizações
*
Um depoimento sobre José Ribeiro de Albuquerque, o “professor Albuquerque”, é tarefa que assumo com grande responsabilidade e alguma emoção.
O ano de 1953, ano em que entrei para o ISCEF, foi o do termo da primeira licenciatura, naquela escola, após a sua importante reforma de 1949, e foi também o da abertura da Faculdade de Economia do Porto, assim acabando o “monopólio” do ensino superior de economia em Lisboa, e no Quelhas.
A esta distância de quase seis décadas, sinto ter vivido um momento particularmente relevante, do que então não tive, evidentemente, consciência. Procurando sintetizar e valorizar o que o mereça, com a inevitável e discutível subjectividade, sobrelevo duas áreas, a de análise económica e a de matemáticas gerais.
Quanto à “análise económica”, era notória a influência de Pinto Barbosa e dos seus “três mosqueteiros” – Jacinto Nunes, Pereira de Moura e Teixeira Pinto – com a (diria…) influência tutelar do keynesianismo samuelsoniano, grande passo em frente no fascismo, que, no entanto, a alguns economistas desse meio dos anos 50 não bastava. Se o depoimento fosse sobre essa reforma, sobre a escola, sobre Jacinto Nunes ou Pereira de Moura, continuaria por esta via, de que apenas me sirvo para sublinhar a enorme importância que tinham, para os “caloiros” de então, a cadeira de “matemáticas gerais” do 1º ano e as cadeiras sequentes, de métodos quantitativos.
O que a memória me traz, avivada e, se possível, amadurecida pela experiência e pela reflexão, é a de uma cadeira do primeiro ano em que encontrei, pela primeira vez, o “professor Albuquerque”, cadeira que tinha uma função sobretudo “selectiva”, fazendo a triagem, na passagem para o segundo ano, enquanto “cadeira de precedência”, impedindo a passagem de ano, como o “chumbo” em Geografia Económica ou em Noções Fundamentais de Direito possibilitava… com “uma cadeira atrasada” e recuperável.
Pois essa cadeira-crivo, que nos parecia (incorrectamente) apenas para isso servir, tinha uma personalização sempre presente, José Ribeiro de Albuquerque, sabendo-se da existência, quase na sombra, de um professor Vicente Gonçalves, como se sabe de um fantasma, ou de um susto, ou de uma ameaça. E, pelo menos para mim, o “professor Albuquerque” como que moderava, como que amaciava a característica “assustadora” das “matemáticas gerais”.
Por duas razões.
Porque, na exposição da matéria, o “professor Albuquerque” parecia que entrava num outro mundo, num mundo seu. Quando expunha o teorema de Weierstrass, ou outros, parecia ter-se ausentado para a sua Pasárgada, e nela se isolava[i].
Sobre esta razão, recordo um episódio. Numa aula, em que o professor embalara, e ia enchendo o quadro negro – para nós enorme, para ele pequeno –, acompanhado pela música – para ele! – do riscar do giz, dois ou três alunos estavam distraídos e conversavam, com despropósito bastante para que o seu comportamento trouxesse o “professor Albuquerque” do seu mundo, do mundo que expunha e desenhava a traços brancos sobre fundo preto. O “professor Albuquerque” interrompeu, voltou-se para eles e, com a sua pausada e muito grave voz, apenas disse “os senhores… ai na penumbra habitual da direita… por favor, não perturbem a exposição”, e voltou à sua tarefa, ao seu mundo.
Outra razão, aliás já bem presente na anterior, resultava da sua personalidade. O “professor Albuquerque” era de uma delicadeza e simpatia inexcedíveis, embora sem conceder facilidades ou aberto a intimidades. Um aluno era diferente dele por ser um aluno, mas era, para ele, a si igual enquanto outro.
Como seu aluno, mais de uma vez fui a sua casa, a Campo de Ourique, de onde ele descia, a pé, para o Quelhas, pelo tempo primaveril com as suas sandálias, que contrastavam com o formalismo da indumentária que caracterizava a época, quer entre professores, quer entre alunos. Nessas minhas idas a sua casa, para uma explicação ou para saber resultados de avaliações e suas fundamentações, fui sempre recebido com muita simpatia e afabilidade, e informado e ajudado. É o único docente a casa de quem me lembro de ter ido como aluno…
Mais tarde, depois dos dois anos em que o tive como professor, conheci José Ribeiro de Albuquerque noutras circunstâncias. Primeiro, sabendo das suas ligações ao Partido Comunista a que eu aderira, depois através de contacto directo, em episódios na chamada “crise de 1962”.
Tendo eu sido incumbido da tarefa de contactar economistas e professores do ISCEF para mobilizar apoios para a luta dos estudantes, tive do camarada José Ribeiro de Albuquerque uma ajuda extraordinária. E, quando foi decidida a greve da fome na cantina da cidade universitária, no meio dos estudantes que ocupavam a cantina, solidários e em apoio logístico ao grupo de grevistas, acompanhei o “professor Albuquerque” ao local, com a esposa, onde se sentaram numa mesa, e ficaram, discretamente, na atitude de quem, apesar de algumas décadas de diferença, está onde deve estar, entre os seus. E assim foram sentidos.
Mas havia outras circunstâncias. E, na minha tarefa, em que me sentia na obrigação – e tinha o prazer! – de, de vez em quando, me sentar na mesa com aquele simpático e determinado casal, para o informar sobre a situação e conversar um pouco, houve um momento em que, dada a quase certa invasão da polícia, depois de goradas algumas provocações ensaiadas por um grupo de fascistas que fizera quartel-general numa casa perto do Saldanha – onde nos conseguíramos infiltrar –, foi decidido que alguns de nós deveriam evitar ser detidos, e entre eles o “professor Albuquerque”. Fui, naturalmente, encarregado de lhe comunicar a decisão, que também me incluía, por já ter saído da Universidade há 4 anos e, como membro do PCP, estar integrado na luta clandestina.
Não foi fácil convencer o “professor Albuquerque”. Por vontade pessoal, ficaria onde estava, ali sentado e solidário, a acompanhar os grevistas e os outros estudantes, até à invasão da polícia, até porque, argumentava ele, a sua posição de apoio à luta dos estudantes era conhecida da PIDE, como decerto o era a sua presença ali. Quase foi necessário invocar disciplina partidária para o fazer ir para a casa. E foi por pouco tempo que escapou a ser levado para Caxias, o que fora considerado como podendo ter resultados negativos na luta mais global contra o fascismo em que aquela luta, de tão grande relevância, se integrava.[ii]
Teria sido das últimas vezes, em Maio de 1962, em que estive com ele antes de Abril de 1974. Depois, quando fui docente no então já ISE, algumas vezes me cruzei com José Ribeiro de Albuquerque na “nossa Escola”, sempre com a mesma postura, coerente e firme, afável e solidário. Com saudade o lembro e tenho pena de não termos tido maior contacto. Mas a vida e a luta apenas nos proporcionaram aqueles que tivemos. E de alguns, destes, presto grato e comovido testemunho.
O ano de 1953, ano em que entrei para o ISCEF, foi o do termo da primeira licenciatura, naquela escola, após a sua importante reforma de 1949, e foi também o da abertura da Faculdade de Economia do Porto, assim acabando o “monopólio” do ensino superior de economia em Lisboa, e no Quelhas.
A esta distância de quase seis décadas, sinto ter vivido um momento particularmente relevante, do que então não tive, evidentemente, consciência. Procurando sintetizar e valorizar o que o mereça, com a inevitável e discutível subjectividade, sobrelevo duas áreas, a de análise económica e a de matemáticas gerais.
Quanto à “análise económica”, era notória a influência de Pinto Barbosa e dos seus “três mosqueteiros” – Jacinto Nunes, Pereira de Moura e Teixeira Pinto – com a (diria…) influência tutelar do keynesianismo samuelsoniano, grande passo em frente no fascismo, que, no entanto, a alguns economistas desse meio dos anos 50 não bastava. Se o depoimento fosse sobre essa reforma, sobre a escola, sobre Jacinto Nunes ou Pereira de Moura, continuaria por esta via, de que apenas me sirvo para sublinhar a enorme importância que tinham, para os “caloiros” de então, a cadeira de “matemáticas gerais” do 1º ano e as cadeiras sequentes, de métodos quantitativos.
O que a memória me traz, avivada e, se possível, amadurecida pela experiência e pela reflexão, é a de uma cadeira do primeiro ano em que encontrei, pela primeira vez, o “professor Albuquerque”, cadeira que tinha uma função sobretudo “selectiva”, fazendo a triagem, na passagem para o segundo ano, enquanto “cadeira de precedência”, impedindo a passagem de ano, como o “chumbo” em Geografia Económica ou em Noções Fundamentais de Direito possibilitava… com “uma cadeira atrasada” e recuperável.
Pois essa cadeira-crivo, que nos parecia (incorrectamente) apenas para isso servir, tinha uma personalização sempre presente, José Ribeiro de Albuquerque, sabendo-se da existência, quase na sombra, de um professor Vicente Gonçalves, como se sabe de um fantasma, ou de um susto, ou de uma ameaça. E, pelo menos para mim, o “professor Albuquerque” como que moderava, como que amaciava a característica “assustadora” das “matemáticas gerais”.
Por duas razões.
Porque, na exposição da matéria, o “professor Albuquerque” parecia que entrava num outro mundo, num mundo seu. Quando expunha o teorema de Weierstrass, ou outros, parecia ter-se ausentado para a sua Pasárgada, e nela se isolava[i].
Sobre esta razão, recordo um episódio. Numa aula, em que o professor embalara, e ia enchendo o quadro negro – para nós enorme, para ele pequeno –, acompanhado pela música – para ele! – do riscar do giz, dois ou três alunos estavam distraídos e conversavam, com despropósito bastante para que o seu comportamento trouxesse o “professor Albuquerque” do seu mundo, do mundo que expunha e desenhava a traços brancos sobre fundo preto. O “professor Albuquerque” interrompeu, voltou-se para eles e, com a sua pausada e muito grave voz, apenas disse “os senhores… ai na penumbra habitual da direita… por favor, não perturbem a exposição”, e voltou à sua tarefa, ao seu mundo.
Outra razão, aliás já bem presente na anterior, resultava da sua personalidade. O “professor Albuquerque” era de uma delicadeza e simpatia inexcedíveis, embora sem conceder facilidades ou aberto a intimidades. Um aluno era diferente dele por ser um aluno, mas era, para ele, a si igual enquanto outro.
Como seu aluno, mais de uma vez fui a sua casa, a Campo de Ourique, de onde ele descia, a pé, para o Quelhas, pelo tempo primaveril com as suas sandálias, que contrastavam com o formalismo da indumentária que caracterizava a época, quer entre professores, quer entre alunos. Nessas minhas idas a sua casa, para uma explicação ou para saber resultados de avaliações e suas fundamentações, fui sempre recebido com muita simpatia e afabilidade, e informado e ajudado. É o único docente a casa de quem me lembro de ter ido como aluno…
Mais tarde, depois dos dois anos em que o tive como professor, conheci José Ribeiro de Albuquerque noutras circunstâncias. Primeiro, sabendo das suas ligações ao Partido Comunista a que eu aderira, depois através de contacto directo, em episódios na chamada “crise de 1962”.
Tendo eu sido incumbido da tarefa de contactar economistas e professores do ISCEF para mobilizar apoios para a luta dos estudantes, tive do camarada José Ribeiro de Albuquerque uma ajuda extraordinária. E, quando foi decidida a greve da fome na cantina da cidade universitária, no meio dos estudantes que ocupavam a cantina, solidários e em apoio logístico ao grupo de grevistas, acompanhei o “professor Albuquerque” ao local, com a esposa, onde se sentaram numa mesa, e ficaram, discretamente, na atitude de quem, apesar de algumas décadas de diferença, está onde deve estar, entre os seus. E assim foram sentidos.
Mas havia outras circunstâncias. E, na minha tarefa, em que me sentia na obrigação – e tinha o prazer! – de, de vez em quando, me sentar na mesa com aquele simpático e determinado casal, para o informar sobre a situação e conversar um pouco, houve um momento em que, dada a quase certa invasão da polícia, depois de goradas algumas provocações ensaiadas por um grupo de fascistas que fizera quartel-general numa casa perto do Saldanha – onde nos conseguíramos infiltrar –, foi decidido que alguns de nós deveriam evitar ser detidos, e entre eles o “professor Albuquerque”. Fui, naturalmente, encarregado de lhe comunicar a decisão, que também me incluía, por já ter saído da Universidade há 4 anos e, como membro do PCP, estar integrado na luta clandestina.
Não foi fácil convencer o “professor Albuquerque”. Por vontade pessoal, ficaria onde estava, ali sentado e solidário, a acompanhar os grevistas e os outros estudantes, até à invasão da polícia, até porque, argumentava ele, a sua posição de apoio à luta dos estudantes era conhecida da PIDE, como decerto o era a sua presença ali. Quase foi necessário invocar disciplina partidária para o fazer ir para a casa. E foi por pouco tempo que escapou a ser levado para Caxias, o que fora considerado como podendo ter resultados negativos na luta mais global contra o fascismo em que aquela luta, de tão grande relevância, se integrava.[ii]
Teria sido das últimas vezes, em Maio de 1962, em que estive com ele antes de Abril de 1974. Depois, quando fui docente no então já ISE, algumas vezes me cruzei com José Ribeiro de Albuquerque na “nossa Escola”, sempre com a mesma postura, coerente e firme, afável e solidário. Com saudade o lembro e tenho pena de não termos tido maior contacto. Mas a vida e a luta apenas nos proporcionaram aqueles que tivemos. E de alguns, destes, presto grato e comovido testemunho.
-
[i] - agora, quando escrevo, lembro Lopes Graça a reger o Coro dos Amadores de Música, e Mário Castrim a escrever que o único amadorismo que aceitava era o do profissional que ama a sua profissão.
[ii] - justo é também referir, neste episódio (e neste testemunho), as presenças e atitudes solidárias e firmes dos professores Lindley Cintra e Pereira de Moura.
[ii] - justo é também referir, neste episódio (e neste testemunho), as presenças e atitudes solidárias e firmes dos professores Lindley Cintra e Pereira de Moura.
<< Home