Friday, October 05, 2012

1935: O ano da demissão de Abel Salazar (em cartas a Celestino da Costa) (3)

 
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Os elementos da Ditadura no Porto queriam-me impor a «reclamação», o que eu não estava disposto a fazer, nem estou. Propuseram-me concordatas, plataformas, etc., mas eu respondo sempre que não tendo sido nunca político, não tendo ligações políticas, nem pertencendo a nenhum partido, não tinha que fazer concordatas nem reclamações. Sei muito bem que há muito tenho um «cadastro de café», isto é, um cadastro elaborado com «diz-se», com intrigas e mal entendidos; sei muito bem que esse cadastro de café é a única acusação que me fazem, sem no entanto revelarem o tal cadastro. Que pelo contrário nenhum cadastro existe ou pode existir na polícia secreta. A gente da situação sabe isso tudo, e confessa-o. Que tenho eu então que reclamar?
Tenho tomado apenas atitudes intelectuais e filosóficas, se tais palavrões são precisos para definir algumas insignificantes idéias e teorias; nunca falei, nem fiz conferências, nem cursos culturais que não fosse a pedido, em associações legais, em publicações legais, censuradas. Nunca, até agora, o Director, Reitor ou Ministro fizeram a menor observação sobre essas conferências ou cursos; a gente da Situação reconhece-o, confessa-o. Que tenho eu então que reclamar?
Se não sou político, também não estou com esta Situação, tenho esse direito, creio eu, como tenho também o de não entrar para a União Nacional: a gente da Situação reconhece-o. Não tenho portanto nada a reclamar pois não tenho nada a justificar.
Tenho apenas e sempre necessidade de vida intelectual, em manifestações claras, nítidas e leais; e a satisfação dessa necessidade não me consta que seja proibida por lei.
Acusam-me também de sugestionar os estudantes, o que é verdade mas no sentido de se criarem a liberdade de espírito e uma educação científica sólida, em oposição com uma educação metafísica nebulosa e estéril. Sou um inimigo encarniçado da metafísica e não o oculto; defendo nos cursos, em conferências e em escritos, o espírito e a educação científicas contra o espírito e a educação metafísicas. Isto nunca o ocultei nem o oculto, mas creio-me no meu direito. Se eles não o querem, que tenham pelo menos a coragem e a lealdade de o dizerem claramente. Se querem que se faça política «heroicizante» nos cursos, então que se deixem de comédias e não criminem os outros com sofismas.
Disseram-me mais os «delegados» da Situação que isto foi feito para meter medo (sic) . Se assim é, e se eu, com outros, andamos servindo de cabeças de turco, também nada tenho que «reclamar».
Os mesmos «delegados» ameaçaram-me veladamente com o seguinte: 1.° — Que se não reclamasse confessava tacitamente o cadastro de café; 2.° — Que se não reclamasse seria acusado de fazer o jogo das esquerdas, procurando armar em mártir para exploração política. Estas duas ameaças deixo-as ao seu juízo porque ele as classificará como entender... Mas note que é pitoresco: põem-me a andar e ainda me ameaçam de... fazer de mártir!
Não lhe contaria isto se não me tivesse sido dito directamente pelos próprios delegados da Situação. Que disseram ainda: — Estamos num momento de guerra, e nestes momentos tudo se justifica. Ao que respondi ser isto estranho num momento àe normalidade constitucional.
Em resumo, meu caro amigo, repito-lhe o que já disse: não tenho nem tive jamais ligações políticas, nem faço parte de nenhum grupo ou grupelho, e se têm de me acusar de alguma coisa, que o digam, e que não joguem com fantasmas.
Mas precisamente porque não sou político é que nunca aceitei os benefícios que a Ditadura me ofereceu em tempos a troco duma adesão. Todas as minhas aspirações se resumem em viver livremente, trabalhar e ter uma actividade intelectual livre.
Manifestamente que tenho simpatias sociais por esta ou aquela corrente; mas com isso ninguém tem nada; e se eles põem a questão no dilema: «quem não é por nós é contra nós», direi francamente «que não sou por eles e portanto, neste sentido, claramente contra eles». Mas isto é política à força e não por gosto ou por vício ou interesse.
Se o meu caro amigo me pergunta quais as minhas idéias sociais, responder-lhe-ei claramente e lealmente sempre que o queira; mas isso, como sabe, não é o que agora se debate.
Estava resolvido a continuar trabalhando no laboratório como trabalhador livre, voluntário. Não mo permitem, e este abandono do laboratório e do trabalho é, para mim, o mais penoso do caso; mas acabou-se, trabalharei noutras coisas.
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Carta  56 (1936, mesmo assunto)
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Não lhe mandei ainda as separatas do que tenho publicado porque tenho já preparado o fascículo III do volume III dos trabalhos do Instituto e o fascículo I do volume IV. Mas, sucede o seguinte. A minha deliciosa Faculdade que continua hostilizando-me na sombra em tudo e por tudo, e envenenando a minha situação, recusa-se terminantemente a brochar os referidos fascículos e mesmo a pagar todas as separatas.
Ora isto é, além de patifaria, ilegal, pois todos estes trabalhos, embora publicados depois da minha demissão, foram executados, orçamentados e aprovados pelo Conselho Administrativo antes da minha demissão, como consta de documentos que possuo. Não obstante isto, e passando por cima de todos os direitos, a tal Faculdade (ou lá o que é aquilo...) nega-se, como disse, a distribuir o trabalho que nela foi realizado. Isto com a seguinte pitoresca concessão: o Director consente na distribuição de dois desses trabalhos, escolhidos por ele! Não acha patusco tudo isto, sobretudo a última cláusula? Claro está que isto me encravou e me inutilizou todo o esforço dispendido em circunstâncias bem difíceis. Ajuntarei a isto que a Histologia já está ocupada pela Anatomia, incluindo um atelier de pintura (derrocada completa), e algum material já distribuído como fizeram da outra vez.
Isto tudo, junto à proibição formal de ir à Biblioteca, encravou-me. Tenho um microscópio em casa suficiente, grande quantidade de material preparado, entre ele o que serve de base ao meu velho projecto de descrever a evolução completa do ovário adulto até aos cinco anos, na coelha. Mas se posso publicar nas revistas, não posso tirar separatas em número suficiente, e estou grandemente embaraçado porque, apesar de reduzido o trabalho a tão mínimas condições, no entanto nem assim pude agüentar com as despesas por ele exigidas. Quer dizer, endividei-me e tive de parar com a coisa.
Mantenho porém nesta derrocada a mesma firmeza de ânimo, o mesmo entusiasmo, e a fé de outrora.
Além disso, para demonstrar a patifaria das campanhas levantadas contra mim, comecei a escrever, no Diabo, no Pensamento e em outros locais, artigos de filosofia. Nem a Censura, nem a gente de Situação viu nisso até agora nada de subversivo nem de bolchevista. Ora isto é por escrito precisamente o que eu dizia em cursos e conferências. Vê-se assim a nu a chantagem. Com efeito, a propósito desses artigos, certos personagens continuam a campanha difamatória. Por exemplo, a propósito de um artigo sobre a Escola de Viena, o Diário da Manhã publicou uma local intitulada «Um Malfeitor». Compreende alguma coisa? Que relação há entre alhos e bugalhos? Mas é assim mesmo, e qualquer pessoa, com este caso definido e concreto, pode ver o manifesto parti-pris tendencioso da campanha. «Malfeitor», segundo o tal articulista, por ser um defensor e um propagandista do Empirismo Lógico, do Neo-Positivismo e da Filosofia da Escola de Viena! Quer maior prova de má fé e de estupidez? Agora lembram-se de espalhar outra coisa: que os meus trabalhos não são feitos por mim...
A tese do Bacelar também lhe não foi enviada pela razão acima exposta, isto é, veio da Direcção. O Director proibiu até que qualquer empregado fizesse serviço no Laboratório de Hematologia, única coisa que resta do antigo e defunto Instituto. Eu já pensei em ir para o seu Instituto continuar os meus trabalhos, no que com certeza consentia, trabalhos que passariam a ser integrados na vida do seu Instituto se fosse possível, mas faltam-me para isso recursos. Por muito pouco com que vivesse em Lisboa (400, 500 escudos?) com l conto de reis (que é o que eles me dão por mês) é impossível sustentar esta casa e ir trabalhar em Lisboa. Recebi em tempos propostas de Londres com muita papelada mas até agora nada. Aí tem o balanço da situação.
Deu-me grande prazer o que me diz sobre a tradução da «Embriologia», a publicação do novo volume, e o «Manual». Por um momento pareceu-me reviver os antigos tempos de projectos e de esperanças. Vê-se que nem tudo acabou, mas a situação geral é deplorável.
Pelo menos a Faculdade do Porto foi por completo ao fundo: aquilo, na opinião geral, está um verdadeiro charco de misérias. Faliu.
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Carta 58 (1936, ano da tese de José Bacelar)

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Tudo reproduzido do livro, que se recomenda vivamente:
(Abel Salazar - 96 cartas a Celestino da Costa)