Wednesday, October 06, 2010

A REVOLUÇÃO REPUBLICANA DE 31 DE JANEIRO, por Ruy Luís Gomes (4)

A CIDADE DO PORTO

Enquanto que Portugal se apresentava como país subdesenvolvido, agrícola e comercial, dada a irrelevância, já documentada, do sector secundário como factor de absor­ção do excedente de mão-de-obra do sector primário, o distrito do Porto e, especialmente, a sua capital, tinham uma estrutura de outro tipo.
Na verdade, segundo um inquérito feito por uma comissão composta por Oliveira Martins e mais três indus­triais portuenses (ver [6], pág. 416), em 1881, para uma população de 108 346 habitantes, havia no Porto 37 377 que viviam de uma actividade industrial. Quer dizer, o Porto era já em 1881 um centro fabril, com um sector secun­dário abrangendo um terço da sua população total, emer­gindo de um País onde só contavam os sectores primário e terciário! E em 1890 e em 1900 ainda mais se acentua este predomínio da indústria, que chega a constituir 50 % da população.
O Porto do séc. XIX é, pois, uma cidade industrial — a única cidade industrial do País — e certamente aí reside a explicação autêntica do seu carácter de caso à parte, tanto no domínio do pensamento prático como no domínio do pensamento especulativo.
A sua indústria «dava trabalho a 8o ooo pessoas, ren­dimento a 9 500 contos de réis de capital, e representava, no conjunto dos seus produtos, o valor de 15000 contos» (ver [6], pág. 416).
Porém, estes números impressionantes não significam que fossem de um certo nível as condições de vida das massas operárias. Eram até miseráveis, o que novamente nos coloca perante as consequências de um certo progresso técnico em regime de economia depressiva.
Nessa época recuada, há 75 anos, as duas indústrias mais importantes do Porto eram: Fiação e Tecidos de Algodão, com 31420 operários (10516 homens, 5186 menores e 15 718 mulheres) e os Tabacos, com i 245 operários (543 homens, 298 menores e 404 mulheres), segundo os dados do Inquérito (ver [6], pág. 414-415).
Na Fiação, os jornais (1), iam de 240 rs. a 500 para os homens, de 20 a 240 para os rapazes, de 8o a 240 para as mulheres e de 20 a 150 para as raparigas. E nos Tabacos, de 260 a 500 para os homens e de 40 a 240 para os rapazes.
Quanto ao horário de trabalho ia de sol a sol e às vezes ainda entrava pela noite dentro.
Mas fixemos bem esta passagem do Inquérito ([6], pág. 194, 195): «Crianças de ambos os sexos, desde os 7, desde os 8, desde os 9 anos, são obrigadas a um trabalho que começa com o dia e, se de verão acaba com ele, de inverno protrai-se até às 8 horas da noite. Em regra, tudo é analfabeto, habitualmente as mulheres passam de mão em mão. Um fabricante disse-nos que em vendo um operá­rio a ler punha-o na rua, outro que na sua fábrica as mance­bias começavam aos 13 anos. Confessou-se-nos tudo isto de um modo natural e simples».
Este trecho mostra que os operários não eram tratados como seres humanos; comprava-se-lhes a força de trabalho como qualquer outra mercadoria obedecendo à lei da oferta e da procura. Aquela era abundante e, portanto, barata (2).
Mas os operários reagiam contra este regime de tra­balho por intermédio das suas associações de classe, da sua organização partidária, socialista, e fazendo os seus movi­mentos reivindicativos do horário das 8 horas.
Nessas acções de massas destacam-se dois elementos que, além disso, também estão ligados às movimentações do Ultimatum — 31 de Janeiro.
Um deles é Viterbo de Campos (3), natural da fre­guesia da Vitória, da Cidade do Porto, marceneiro, que já em 1878, com menos de 20 anos, participava nas sessões do Congresso Socialista, na sede da antiga Associação dos Trabalhadores, à Pontinha, donde saiu uma só organização sob o nome de Partido dos Operários Socialistas Portugueses.
Em 1889, foi escolhido para representar as associações operárias do Norte de Portugal no Congresso Internacional realizado em Paris, e daí em diante Viterbo de Campos ingressa na corrente marxista. Representou também o seu partido na Liga Patriótica do Norte, constituída no Porto sob a presidência de Antero de Quental, logo após o Ulti­matum. Outro destacado militante foi Luís Soares, serra­lheiro, natural de Vale de Cambra, distrito de Aveiro, e que exerceu vários cargos desde 1885 (ver [16]).
Em 1887, deu-se no Porto o primeiro movimento grevista, dos manipuladores de Tabacos (ver [9]). Esta greve prolongou-se desde 15 de Março a 3 de Abril, e durante estas semanas sucederam-se os comícios, na Praça do Marquês de Pombal (antigo Largo da Aguardente) e no Monte Aven-tino (antigo Monte das Antas). Chegaram a estar presos, na Cadeia Civil, 160 operários e, no Quartel do Carmo (antigo quartel da Guarda Municipal), esteve a charuteira Blandina de Sousa.
Vieram para a cidade vários regimentos de fora, sob o comando dum general, e chegou a estar ancorado no Douro um transporte de guerra, o índia, para funcionar de cadeia suplementar. Mas, finalmente, os operários conseguiram uma melhoria sensível do seu regime de trabalho.
Em 1888, rebenta outro grande movimento de para­lisação do trabalho, como resistência a uma disposição de lei, da autoria do ministro da Fazenda, Mariano de Carvalho, pela qual os operários tinham de pagar uma licença para poderem trabalhar (ver [8]). Era, afinal, um processo de arranjar receitas para o Estado, quase do mesmo género de um projecto de capitar cada emigrante em vinte mil réis de multa, certamente com o pretexto de diminuir a emigração (ver [2], pág. 421).
Nesta greve, conhecida por greve das licenças e secun­dada pelas classes de Lisboa, teve papel preponderante Viterbo de Campos, resultando da acção de todos a revogação do decreto e a queda do ministro da Fazenda.
O terceiro grande movimento grevista no Porto, o dos tecelões, começou no dia 15 de Maio de 1903, doze anos depois do 31 de Janeiro, e envolveu 30 ooo trabalhadores, transformando-se depois numa greve geral.
Nas proximidades do Ultimatum — 31 de Janeiro, o Porto era, pois, um centro industrial com um proletariado vivendo em baixíssimas condições económicas, mas com dirigentes da categoria de Viterbo de Campos e Luís Soares e uma consciência de classe afirmada já em movimentos reivindicativos da amplitude das greves de 1887 e de 1888.

(1) Como termo de comparação, recordemos que Basílio Teles, em [7], pág. 412), dá, para 1890, os seguintes preços: 1 kg açúcar 226 rs, 1 kg arroz 86 rs, 1 kg. bacalhau 146 rs.
(2) A Fiação de Tecidos de Algodão continua hoje, de longe, a ser a mais importante actividade industrial, quase toda situada no Porto e regiões próximas.
Mas, pelos números vindos a público (jornais de 8 de Janeiro de 1956), o salário médio (diário) não chega a vinte escudos, pois são 500 ooo contos (de salários) por ano para um total de 70 ooo operários.
(3) Ver [8].