A luta dos Antifascistas Portugueses do Brasil contra a ditadura de Salazar e o Colonialismo, por Miguel Urbano Rodrigues
No dia 25 de Maio, Miguel Urbano Rodrigues pronunciou em Grenoble, dirigindo-se a estudantes franceses e portugueses, uma conferencia, patrocinada pelo Departamento de Estudos Lusófonos da Universidade Stendhal e pela Maison de la Culture Portugaise de Grenoble, sobre a luta dos antifascistas portugueses do Brasil contra a ditadura de Salazar e o colonialismo. Publicamos hoje o texto da sua intervenção.
Miguel Urbano Rodrigues
A luta dos antifascistas portugueses contra a ditadura de Salazar nos países para onde tinham emigrado é um tema quase ignorado na Europa, nomeadamente em França.
Os exilados desempenharam contudo um papel importante no combate ao fascismo, sobretudo na América Latina e no Canadá.
É da minha experiência de 17 anos de luta como exilado político no Brasil que vos vou falar.
Um jornal, o «Portugal Democrático», contribuiu decisivamente para o êxito do trabalho desses antifascistas, funcionando como elo de ligação entre os núcleos da emigração democrática da América e da Europa.
Dois períodos muito diferentes marcaram a vida desse jornal mensal, editado em São Paulo, no Brasil, com uma tiragem média de 4.000 exemplares.
O primeiro vai desde a fundação em 1956 ao golpe de estado que instaurou a ditadura no Brasil, em Abril de 1964.
Desde o início o jornal foi hostilizado pela embaixada portuguesa e pelo poderoso lobby salazarista que editava no Rio dois semanários de grande tiragem.
Os exilados portugueses contaram sempre com o apoio dos intelectuais progressistas brasileiros, nomeadamente na Universidade de São Paulo, do Partido Comunista, dos estudantes e do movimento sindical.
Para essa solidariedade contribuiu o facto de destacadas personalidades da oposição democrática terem optado pelo Brasil como terra de exílio. Entre elas, dois ex candidatos à Presidência da República, o general Humberto Delgado e o Prof. Ruy Luis Gomes, e o capitão Henrique Galvão, que comandou o sequestro nas Caraíbas do paquete Santa Maria. Em universidades e em grandes diários marcaram presença académicos, políticos escritores e jornalistas prestigiados como José Morgado, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Sidónio Muralha, Fernando Lemos, Vitor Ramos, Barradas de Carvalho, Castro Soromenho, Maria Archer, Tito de Morais, Manuel Sertório e Vitor Cunha Rego.
Até 1964 os grandes diários brasileiros, com poucas excepções, adoptavam uma posição crítica perante o fascismo português e abriam as suas colunas aos intelectuais exilados. Essa atitude alterou-se após a implantação da ditadura militar.
A grande imprensa e as cadeias de televisão reduziram então ao mínimo as criticas ao regime português. Temiam desagradar ao governo do general Castelo Branco que mantinha relações cordiais com o de Salazar.
Perante a guerra colonial foi diferente a posição dos media. Com excepção da extrema-direita, manifestavam simpatia pelos movimentos de libertação que em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau lutavam pela independência dos respectivos povos.
O governo dos generais adoptou uma posição ambígua. Não condenou o colonialismo português, mas permitiu que os exilados continuassem a denunciar os seus crimes e a expressar a sua solidariedade com o MPLA, a FRELIMO e o PAIGCV.Por um lado, o governo de Brasília não desconhecia os sentimentos anti-colonialistas da esmagadora maioria dos brasileiros. Por outro lado, consciente de que a independência das colónias era uma inevitabilidade histórica, considerava que o apoio as guerras de Salazar pesaria negativamente nas futuras relações do Brasil com os países africanos de língua portuguesa. Na ONU não apoiava a posição de Lisboa nos debates sobre a descolonização.
Mas a polícia politica, o DOPS – o chamado Departamento de Ordem Politica e Social de São Paulo – acompanhou sempre com desconfiança a actividade dos democratas portugueses.
Anos antes do golpe militar, quando, por iniciativa da embaixada, uma comissão de notáveis da colónia promoveu num grande pavilhão de São Paulo um encontro de hóquei em patins entre as selecções de Angola e do Brasil para recolher fundos destinados às «vitimas da guerra colonial» (leia-se os colonos mortos) o DOPS compareceu em força no recinto e prendeu os portugueses que protestavam. Eram poucos e haviam sido agredidos por grupos de fascistas, mas foram eles e dois angolanos os detidos sob a acusação de «subverterem a ordem pública».
Em 1964 o golpe militar colocou o núcleo que editava o «Portugal Democrático» perante um desafio: tentar manter o jornal numa época em que a repressão contra os intelectuais brasileiros era intensa.
Desde o início da guerra colonial as divisões existentes na oposição ao regime tinham-se aprofundado no Brasil. Henrique Galvão, que fora recebido como um herói pelos universitários brasileiros após o sequestro do «Santa Maria», desaprovava a luta dos movimentos de libertação e, afirmando que o povo angolano não estava preparado para exercer o direito à autodeterminação e independência, defendia uma solução neocolonial para a grande colónia.
Outra era a posição do general Humberto Delgado. Condenava com firmeza a guerra colonial e, embora usando uma linguagem cautelosa, reconhecia o direito dos angolanos à autodeterminação.
A ambição de poder de Henrique Galvão e o seu anticomunismo agressivo terão contribuído para a ruptura dos dois dirigentes, quase imediata.
Delgado era ideologicamente um conservador, mas tomou consciência de que o pólo mais dinâmico da oposição antifascista era o núcleo comunista, com o qual manteve relações nem sempre fáceis, mas correctas.
O general já tinha porém abandonado o Brasil para se fixar em Argel quando a implantação da ditadura produziu novas clivagens na oposição antifascista e dificultou mais a luta dos exilados revolucionários e veio reforçar a vigilância policial a que estavam submetidos.
O núcleo comunista decidiu manter o «Portugal Democrático» cujo conselho de redacção foi alterado com a saída de Casais Monteiro e Jorge de Sena.
Ficou formado por Augusto Aragão, Joaquim Barradas de Carvalho, Miguel Urbano Rodrigues e Manuel Sertório (não comunista ). Quando o último viajou para Argel a fim de integrar a Frente Portuguesa de Libertação Nacional, foi substituído pelo engenheiro Francisco Vidal, o único não comunista da equipa.
O governo brasileiro não reagiu à continuação do «Portugal Democrático». Para satisfação nossa, ignorou a edição posterior ao golpe, tal como tinha ignorado as anteriores. Julgo útil salientar que o jornal não se desviou minimamente da sua linha editorial, ostensivamente marxista. Esse número incluiu inclusive um artigo de crítica ao radicalismo pequeno burguês, com citações da obra de Lenine sobre «O esquerdismo, doença infantil do comunismo».
Uma opção da qual nunca nos afastamos foi a de excluir sempre do conteúdo do «Portugal Democrático» qualquer referência a temas da vida política brasileira que não estivessem directamente relacionados com a nossa luta contra o fascismo e o colonialismo português.
Obviamente, as iniciativas brasileiras de solidariedade com as vítimas da repressão em Portugal e nas colónias eram amplamente noticiadas e comentadas.
As polícias politicas – a do Exército, a OBAN, era a mais temida – demonstravam um interesse especial pelos contactos que mantínhamos com intelectuais que lutavam contra a ditadura, sobretudo professores da Universidade de São Paulo como Florestan Fernandes, Paulo Duarte, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, este mais tarde presidente do Brasil.
Pelo que me toca, fui detido e interrogado uma vez pela OBAN e um livro meu – «Opções da Revolução na América Latina» – foi apreendido por decisão do Ministro da Justiça. O facto de ser o editorialista principal de «O Estado de São Paulo», o mais influente diário brasileiro na época, contribuiu para que a repressão não me atingisse com maior dureza.
A polícia identificava em mim um comunista português, mas desconhecia que eu era também – com autorização do PCP – membro do Partido Comunista Brasileiro, então na clandestinidade.
Os ataques aos antifascistas do «Portugal Democrático» provinham sobretudo da Embaixada e das organizações por ela tuteladas e da extrema-direita brasileira.
Uma deputada estadual por São Paulo, Conceição Costa Neves (condecorada por Salazar), levou a sua hostilidade ao ponto de se apresentar no «Estado de São Paulo» com um grupo de parlamentares para entregar à direcção uma carta em que se pedia o meu despedimento, como «traidor à pátria». Registo que o director, Júlio de Mesquita Filho, numa atitude digna, se recusou a receber a delegação.
Teve ampla repercussão nacional uma polémica que mantive com Carlos Lacerda, que também me acusou de «traidor», por haver publicado na imprensa argentina e peruana um artigo em que criticava e ridicularizava o seu apelo, após um encontro com o general Spínola, para que o Brasil interviesse militarmente na Guiné-Bissau ao lado do fascismo português.
Uma das modalidades da perseguição política que atingia alguns de nós era a recusa de passaportes comuns pela Embaixada.
No meu caso, o consulado de São Paulo, até ao 25 de Abril, emitia um passaporte do qual constava a expressão «Válido exclusivamente para Portugal», o que na prática significava «válido para a cadeia se desembarcar em Portugal». Fácil é imaginar os problemas resultantes da falta de um passaporte normal.
A discriminação atingia também as nossas famílias. O consulado recusava entregar-me uma simples certidão de nascimento de meus filhos – pedida pelas escolas – sem requerimento ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Como eram também franceses por via materna, mudaram de nacionalidade para superar a exigência fascista.
Era nesta atmosfera persecutória que desenvolvíamos a nossa actividade como combatentes antifascistas.
Editar o «Portugal Democrático», enviá-lo para os núcleos da emigração democrática em diferentes países e encontrar maneira de introduzir em Portugal – sobretudo através da França – algumas dezenas de exemplares eram as nossas tarefas prioritárias.
Em São Paulo, funcionava então num local do centro da cidade uma instituição, o Centro Republicano Português, que reunia elementos da oposição a Salazar de múltiplas tendências e que promovia com frequência actividades sociais. A personalidade mais representativa do Centro era o Comandante João Sarmento Pimental, um veterano da revolução do 5 de Outubro de 1910, muito respeitado pelos anti-salazaristas brasileiros. Antes do 25 de Abril, tal como Victor da Cunha Rego, aderiu ao Partido Socialista de Mário Soares.
Uma iniciativa que contribuiu para aumentar o prestígio do «Portugal Democrático» nos meios políticos brasileiros foi uma entrevista com Jânio Quadros.
O ex presidente do Brasil, ao passar por Lisboa a bordo de um paquete, criticara o colonialismo português. Concluímos no jornal que seria útil explorar o incidente. Jânio recebeu uma delegação nossa e aceitou responder a um questionário. Mas atribuiu tão pouca importância ao assunto que nos pediu para ser o nosso jornal a preparar as perguntas e as suas respostas. E quando nos devolveu o texto não introduziu alterações.
Mais tarde confessou que não tinha avaliado o alcance da entrevista.
Como o nosso objectivo era fazer dela um acontecimento de repercussão nacional, Jânio, na resposta a algumas das questões, não se limitava a condenar o colonialismo; assumia perante grandes problemas internacionais uma posição de esquerda, ostensivamente anti-imperialista, que não era a sua. Aconteceu o que pretendíamos. Entregámos cópias aos jornais e às agências noticiosas. No dia seguinte a entrevista foi manchete em alguns diários que criticaram Jânio Quadros e teve repercussão internacional.
Recordo que ele manifestou a sua gratidão, sublinhando que graças ao «Portugal Democrático» tinham falado mais dele num só dia do que todo o ano anterior.
Outro instrumento de intervenção política que criámos foi uma organização, a Unidade Democrática Portuguesa, que nos permitia desenvolver acções e tomar iniciativas que transcendiam o âmbito de um jornal como o «Portugal Democrático».
O leque dos aderentes era aberto; nela cabiam oposicionistas com formações ideológicas muito diferentes.
Foi muito útil na promoção de sessões de solidariedade e como canal de informação. Editava um boletim mensal com amplo noticiário sobre a guerra colonial e as lutas do povo português. Traduzido em francês, inglês e espanhol, era enviado para dezenas de jornais europeus e latino-americanos.
Na frente da informação a iniciativa mais importante que os exilados antifascistas do Brasil tomaram naqueles tempos foi o envio anual de um Memorial à Assembleia-Geral das Nações Unidas, assinado por representantes das organizações democráticas portuguesas instaladas em seis países do Continente Americano: Argentina, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Venezuela e Uruguai. O Memorial que abriu a série em 1963 teve como primeiros signatários o general Humberto Delgado e o Prof. Ruy Luiz Gomes, ambos ex candidatos à Presidência de Portugal. Nesse documento eram denunciados com especial ênfase os crimes do colonialismo e pedida à ONU o cumprimento de Resoluções do Conselho de Segurança que exigiam o direito à autodeterminação e independência das colónias portuguesas.
Quando o «The New York Times» e o «Washington Post» publicaram passagens do documento, a repercussão incomodou tanto o fascismo que o Embaixador de Portugal na ONU promoveu uma conferência de imprensa no hotel Waldorf Astoria, em Nova Iorque, na tentativa de desmentir o conteúdo do Memorial.
A publicação no Brasil de livros importantes sobre a luta contra o fascismo e o colonialismo foi um trabalho desenvolvido com êxito pela equipa do «Portugal Democrático» com a colaboração amiga de duas grandes editoras: a Civilização Brasileira e a Brasiliense.
Entre outras obras chamaram a atenção dois livros de denúncia do colonialismo, «A Guerra em Angola», do médico Mário Moutinho de Pádua, e «Angola, Cinco Séculos de Exploração Colonial», de Américo Boavida, dirigente do MPLA. O lançamento de «Rumo à Vitoria» e «A Questão Agrária em Portugal», ambos de Álvaro Cunhal, foi particularmente festejado pelas forças progressistas que se opunham à ditadura brasileira.
Com muita imaginação, e contando com ajudas inestimáveis, conseguimos introduzir em Portugal muitas dezenas de exemplares.
Um acontecimento que obteve ampla repercussão na imprensa brasileira foi o ciclo de Conferências sobre Portugal na Universidade Católica de São Paulo, integrado num Curso de Introdução à Ciência Política.
Perante o interesse despertado pela «transição marcelista», aquela Universidade dirigiu-se à Embaixada de Portugal e ao Centro Republicano Português pedindo-lhes a indicação de nomes de personalidades disponíveis para apresentar comunicações nos diferentes painéis constantes do programa e abertas ao debate sobre o colonialismo e o regime ditatorial de Lisboa.
A Embaixada não somente recusou colaborar como cometeu o erro, através do consulado, de sugerir ao Reitor da Universidade que anulasse o Curso sobre Portugal, argumentando que teria um carácter subversivo, «incompatível com a ideologia da Revolução Brasileira» (assim se auto intitulava a ditadura militar). E foi mais longe: visitou as redacções solicitando que não fizessem a cobertura do acontecimento, gesto que, denunciado, suscitou escândalo.
Os debates, moderados pelo Prof. Florestan Fernandes, uma das figuras mais prestigiadas da intelligentsia brasileira, foi um êxito. Registo que pelos antifascistas portugueses apresentaram comunicações os professores Vitor Ramos e Joaquim Barradas de Carvalho, Augusto Aragão, a estudante Maria Antónia Fiadeiro e eu.
Esses trabalhos foram mais tarde reunidos numa edição especial da Revista «Paz e Terra», publicada em Dezembro de 1969.
Quando ocorreu o 25 de Abril, alguns de nós tomamos a decisão de regressar imediatamente a Portugal.
Na Universidade de São Paulo, amigos brasileiros decidiram promover um Acto público para despedida dos exilados políticos que iam voltar à pátria.
A polícia política recebeu instruções para não proibir a iniciativa. A popularidade da Revolução portuguesa era enorme entre a juventude e o governo do general Medici não queria hostilizar o Movimento das Forças Armadas, o MFA.
Mas o DOPS tudo fez para sabotar a sessão. Horas antes do seu início levou para a sua sede o Professor Paulo Duarte, então com mais de 80 anos, a personalidade que deveria falar em nome da Universidade. Substituímo-lo pelo prof. Soares Amora, genro de Fidelino de Figueiredo e então catedrático de Literatura Portuguesa. O Acto foi presidido por um jovem brasileiro, Sylvio Band, que era então o proprietário «legal» do «Portugal Democrático».
A reitoria tinha cedido para o acto um anfiteatro onde mal caberiam 200 pessoas. Mas ocorreu uma situação não prevista.
Os estudantes compareceram em massa. A sessão teve de se realizar num pátio onde se concentraram mais de 4.000 jovens. E a Revolução Portuguesa e os exilados que ali a representavam foram aclamados numa atmosfera de entusiasmo.
A despedida dos exilados, pelo seu significado, acabou transformada num grande acontecimento político brasileiro.
Isso foi possível graças ao 25 de Abril, a Revolução desejada, pela qual tínhamos vivido e lutado.
É uma brevíssima síntese a que vos apresentei da luta travada no Brasil pelos antifascistas portugueses, quase toda ela nos anos mais duros da ditadura dos generais.
Quando hoje, transcorridas muitas décadas, recordo esses combates pela liberdade do povo português, cumpro um dever prestando comovida homenagem ao colectivo do «Portugal Democrático», jornal formalmente legal, mas produzido por uma organização clandestina. O Conselho de Redacção era formado, com uma excepção, por militantes do Partido Comunista Português. Durante anos, agimos como uma forca de batalha inesquecível. A equipa, de uma solidariedade granítica, tornando real a máxima «todos por um, um por todos», conseguiu fazer da camaradagem amizade. Na luta eles desenvolveram, como homens e revolucionários, as suas melhores potencialidades.
Sou hoje um dos poucos sobreviventes desse maravilhoso colectivo. Ele permanece no meu imaginário como confirmação de que, em circunstâncias excepcionais, o sonho do homem novo se torna quase realidade.
Grenoble, 25 de Abril de 2009
Miguel Urbano Rodrigues
A luta dos antifascistas portugueses contra a ditadura de Salazar nos países para onde tinham emigrado é um tema quase ignorado na Europa, nomeadamente em França.
Os exilados desempenharam contudo um papel importante no combate ao fascismo, sobretudo na América Latina e no Canadá.
É da minha experiência de 17 anos de luta como exilado político no Brasil que vos vou falar.
Um jornal, o «Portugal Democrático», contribuiu decisivamente para o êxito do trabalho desses antifascistas, funcionando como elo de ligação entre os núcleos da emigração democrática da América e da Europa.
Dois períodos muito diferentes marcaram a vida desse jornal mensal, editado em São Paulo, no Brasil, com uma tiragem média de 4.000 exemplares.
O primeiro vai desde a fundação em 1956 ao golpe de estado que instaurou a ditadura no Brasil, em Abril de 1964.
Desde o início o jornal foi hostilizado pela embaixada portuguesa e pelo poderoso lobby salazarista que editava no Rio dois semanários de grande tiragem.
Os exilados portugueses contaram sempre com o apoio dos intelectuais progressistas brasileiros, nomeadamente na Universidade de São Paulo, do Partido Comunista, dos estudantes e do movimento sindical.
Para essa solidariedade contribuiu o facto de destacadas personalidades da oposição democrática terem optado pelo Brasil como terra de exílio. Entre elas, dois ex candidatos à Presidência da República, o general Humberto Delgado e o Prof. Ruy Luis Gomes, e o capitão Henrique Galvão, que comandou o sequestro nas Caraíbas do paquete Santa Maria. Em universidades e em grandes diários marcaram presença académicos, políticos escritores e jornalistas prestigiados como José Morgado, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Sidónio Muralha, Fernando Lemos, Vitor Ramos, Barradas de Carvalho, Castro Soromenho, Maria Archer, Tito de Morais, Manuel Sertório e Vitor Cunha Rego.
Até 1964 os grandes diários brasileiros, com poucas excepções, adoptavam uma posição crítica perante o fascismo português e abriam as suas colunas aos intelectuais exilados. Essa atitude alterou-se após a implantação da ditadura militar.
A grande imprensa e as cadeias de televisão reduziram então ao mínimo as criticas ao regime português. Temiam desagradar ao governo do general Castelo Branco que mantinha relações cordiais com o de Salazar.
Perante a guerra colonial foi diferente a posição dos media. Com excepção da extrema-direita, manifestavam simpatia pelos movimentos de libertação que em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau lutavam pela independência dos respectivos povos.
O governo dos generais adoptou uma posição ambígua. Não condenou o colonialismo português, mas permitiu que os exilados continuassem a denunciar os seus crimes e a expressar a sua solidariedade com o MPLA, a FRELIMO e o PAIGCV.Por um lado, o governo de Brasília não desconhecia os sentimentos anti-colonialistas da esmagadora maioria dos brasileiros. Por outro lado, consciente de que a independência das colónias era uma inevitabilidade histórica, considerava que o apoio as guerras de Salazar pesaria negativamente nas futuras relações do Brasil com os países africanos de língua portuguesa. Na ONU não apoiava a posição de Lisboa nos debates sobre a descolonização.
Mas a polícia politica, o DOPS – o chamado Departamento de Ordem Politica e Social de São Paulo – acompanhou sempre com desconfiança a actividade dos democratas portugueses.
Anos antes do golpe militar, quando, por iniciativa da embaixada, uma comissão de notáveis da colónia promoveu num grande pavilhão de São Paulo um encontro de hóquei em patins entre as selecções de Angola e do Brasil para recolher fundos destinados às «vitimas da guerra colonial» (leia-se os colonos mortos) o DOPS compareceu em força no recinto e prendeu os portugueses que protestavam. Eram poucos e haviam sido agredidos por grupos de fascistas, mas foram eles e dois angolanos os detidos sob a acusação de «subverterem a ordem pública».
Em 1964 o golpe militar colocou o núcleo que editava o «Portugal Democrático» perante um desafio: tentar manter o jornal numa época em que a repressão contra os intelectuais brasileiros era intensa.
Desde o início da guerra colonial as divisões existentes na oposição ao regime tinham-se aprofundado no Brasil. Henrique Galvão, que fora recebido como um herói pelos universitários brasileiros após o sequestro do «Santa Maria», desaprovava a luta dos movimentos de libertação e, afirmando que o povo angolano não estava preparado para exercer o direito à autodeterminação e independência, defendia uma solução neocolonial para a grande colónia.
Outra era a posição do general Humberto Delgado. Condenava com firmeza a guerra colonial e, embora usando uma linguagem cautelosa, reconhecia o direito dos angolanos à autodeterminação.
A ambição de poder de Henrique Galvão e o seu anticomunismo agressivo terão contribuído para a ruptura dos dois dirigentes, quase imediata.
Delgado era ideologicamente um conservador, mas tomou consciência de que o pólo mais dinâmico da oposição antifascista era o núcleo comunista, com o qual manteve relações nem sempre fáceis, mas correctas.
O general já tinha porém abandonado o Brasil para se fixar em Argel quando a implantação da ditadura produziu novas clivagens na oposição antifascista e dificultou mais a luta dos exilados revolucionários e veio reforçar a vigilância policial a que estavam submetidos.
O núcleo comunista decidiu manter o «Portugal Democrático» cujo conselho de redacção foi alterado com a saída de Casais Monteiro e Jorge de Sena.
Ficou formado por Augusto Aragão, Joaquim Barradas de Carvalho, Miguel Urbano Rodrigues e Manuel Sertório (não comunista ). Quando o último viajou para Argel a fim de integrar a Frente Portuguesa de Libertação Nacional, foi substituído pelo engenheiro Francisco Vidal, o único não comunista da equipa.
O governo brasileiro não reagiu à continuação do «Portugal Democrático». Para satisfação nossa, ignorou a edição posterior ao golpe, tal como tinha ignorado as anteriores. Julgo útil salientar que o jornal não se desviou minimamente da sua linha editorial, ostensivamente marxista. Esse número incluiu inclusive um artigo de crítica ao radicalismo pequeno burguês, com citações da obra de Lenine sobre «O esquerdismo, doença infantil do comunismo».
Uma opção da qual nunca nos afastamos foi a de excluir sempre do conteúdo do «Portugal Democrático» qualquer referência a temas da vida política brasileira que não estivessem directamente relacionados com a nossa luta contra o fascismo e o colonialismo português.
Obviamente, as iniciativas brasileiras de solidariedade com as vítimas da repressão em Portugal e nas colónias eram amplamente noticiadas e comentadas.
As polícias politicas – a do Exército, a OBAN, era a mais temida – demonstravam um interesse especial pelos contactos que mantínhamos com intelectuais que lutavam contra a ditadura, sobretudo professores da Universidade de São Paulo como Florestan Fernandes, Paulo Duarte, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, este mais tarde presidente do Brasil.
Pelo que me toca, fui detido e interrogado uma vez pela OBAN e um livro meu – «Opções da Revolução na América Latina» – foi apreendido por decisão do Ministro da Justiça. O facto de ser o editorialista principal de «O Estado de São Paulo», o mais influente diário brasileiro na época, contribuiu para que a repressão não me atingisse com maior dureza.
A polícia identificava em mim um comunista português, mas desconhecia que eu era também – com autorização do PCP – membro do Partido Comunista Brasileiro, então na clandestinidade.
Os ataques aos antifascistas do «Portugal Democrático» provinham sobretudo da Embaixada e das organizações por ela tuteladas e da extrema-direita brasileira.
Uma deputada estadual por São Paulo, Conceição Costa Neves (condecorada por Salazar), levou a sua hostilidade ao ponto de se apresentar no «Estado de São Paulo» com um grupo de parlamentares para entregar à direcção uma carta em que se pedia o meu despedimento, como «traidor à pátria». Registo que o director, Júlio de Mesquita Filho, numa atitude digna, se recusou a receber a delegação.
Teve ampla repercussão nacional uma polémica que mantive com Carlos Lacerda, que também me acusou de «traidor», por haver publicado na imprensa argentina e peruana um artigo em que criticava e ridicularizava o seu apelo, após um encontro com o general Spínola, para que o Brasil interviesse militarmente na Guiné-Bissau ao lado do fascismo português.
Uma das modalidades da perseguição política que atingia alguns de nós era a recusa de passaportes comuns pela Embaixada.
No meu caso, o consulado de São Paulo, até ao 25 de Abril, emitia um passaporte do qual constava a expressão «Válido exclusivamente para Portugal», o que na prática significava «válido para a cadeia se desembarcar em Portugal». Fácil é imaginar os problemas resultantes da falta de um passaporte normal.
A discriminação atingia também as nossas famílias. O consulado recusava entregar-me uma simples certidão de nascimento de meus filhos – pedida pelas escolas – sem requerimento ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Como eram também franceses por via materna, mudaram de nacionalidade para superar a exigência fascista.
Era nesta atmosfera persecutória que desenvolvíamos a nossa actividade como combatentes antifascistas.
Editar o «Portugal Democrático», enviá-lo para os núcleos da emigração democrática em diferentes países e encontrar maneira de introduzir em Portugal – sobretudo através da França – algumas dezenas de exemplares eram as nossas tarefas prioritárias.
Em São Paulo, funcionava então num local do centro da cidade uma instituição, o Centro Republicano Português, que reunia elementos da oposição a Salazar de múltiplas tendências e que promovia com frequência actividades sociais. A personalidade mais representativa do Centro era o Comandante João Sarmento Pimental, um veterano da revolução do 5 de Outubro de 1910, muito respeitado pelos anti-salazaristas brasileiros. Antes do 25 de Abril, tal como Victor da Cunha Rego, aderiu ao Partido Socialista de Mário Soares.
Uma iniciativa que contribuiu para aumentar o prestígio do «Portugal Democrático» nos meios políticos brasileiros foi uma entrevista com Jânio Quadros.
O ex presidente do Brasil, ao passar por Lisboa a bordo de um paquete, criticara o colonialismo português. Concluímos no jornal que seria útil explorar o incidente. Jânio recebeu uma delegação nossa e aceitou responder a um questionário. Mas atribuiu tão pouca importância ao assunto que nos pediu para ser o nosso jornal a preparar as perguntas e as suas respostas. E quando nos devolveu o texto não introduziu alterações.
Mais tarde confessou que não tinha avaliado o alcance da entrevista.
Como o nosso objectivo era fazer dela um acontecimento de repercussão nacional, Jânio, na resposta a algumas das questões, não se limitava a condenar o colonialismo; assumia perante grandes problemas internacionais uma posição de esquerda, ostensivamente anti-imperialista, que não era a sua. Aconteceu o que pretendíamos. Entregámos cópias aos jornais e às agências noticiosas. No dia seguinte a entrevista foi manchete em alguns diários que criticaram Jânio Quadros e teve repercussão internacional.
Recordo que ele manifestou a sua gratidão, sublinhando que graças ao «Portugal Democrático» tinham falado mais dele num só dia do que todo o ano anterior.
Outro instrumento de intervenção política que criámos foi uma organização, a Unidade Democrática Portuguesa, que nos permitia desenvolver acções e tomar iniciativas que transcendiam o âmbito de um jornal como o «Portugal Democrático».
O leque dos aderentes era aberto; nela cabiam oposicionistas com formações ideológicas muito diferentes.
Foi muito útil na promoção de sessões de solidariedade e como canal de informação. Editava um boletim mensal com amplo noticiário sobre a guerra colonial e as lutas do povo português. Traduzido em francês, inglês e espanhol, era enviado para dezenas de jornais europeus e latino-americanos.
Na frente da informação a iniciativa mais importante que os exilados antifascistas do Brasil tomaram naqueles tempos foi o envio anual de um Memorial à Assembleia-Geral das Nações Unidas, assinado por representantes das organizações democráticas portuguesas instaladas em seis países do Continente Americano: Argentina, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Venezuela e Uruguai. O Memorial que abriu a série em 1963 teve como primeiros signatários o general Humberto Delgado e o Prof. Ruy Luiz Gomes, ambos ex candidatos à Presidência de Portugal. Nesse documento eram denunciados com especial ênfase os crimes do colonialismo e pedida à ONU o cumprimento de Resoluções do Conselho de Segurança que exigiam o direito à autodeterminação e independência das colónias portuguesas.
Quando o «The New York Times» e o «Washington Post» publicaram passagens do documento, a repercussão incomodou tanto o fascismo que o Embaixador de Portugal na ONU promoveu uma conferência de imprensa no hotel Waldorf Astoria, em Nova Iorque, na tentativa de desmentir o conteúdo do Memorial.
A publicação no Brasil de livros importantes sobre a luta contra o fascismo e o colonialismo foi um trabalho desenvolvido com êxito pela equipa do «Portugal Democrático» com a colaboração amiga de duas grandes editoras: a Civilização Brasileira e a Brasiliense.
Entre outras obras chamaram a atenção dois livros de denúncia do colonialismo, «A Guerra em Angola», do médico Mário Moutinho de Pádua, e «Angola, Cinco Séculos de Exploração Colonial», de Américo Boavida, dirigente do MPLA. O lançamento de «Rumo à Vitoria» e «A Questão Agrária em Portugal», ambos de Álvaro Cunhal, foi particularmente festejado pelas forças progressistas que se opunham à ditadura brasileira.
Com muita imaginação, e contando com ajudas inestimáveis, conseguimos introduzir em Portugal muitas dezenas de exemplares.
Um acontecimento que obteve ampla repercussão na imprensa brasileira foi o ciclo de Conferências sobre Portugal na Universidade Católica de São Paulo, integrado num Curso de Introdução à Ciência Política.
Perante o interesse despertado pela «transição marcelista», aquela Universidade dirigiu-se à Embaixada de Portugal e ao Centro Republicano Português pedindo-lhes a indicação de nomes de personalidades disponíveis para apresentar comunicações nos diferentes painéis constantes do programa e abertas ao debate sobre o colonialismo e o regime ditatorial de Lisboa.
A Embaixada não somente recusou colaborar como cometeu o erro, através do consulado, de sugerir ao Reitor da Universidade que anulasse o Curso sobre Portugal, argumentando que teria um carácter subversivo, «incompatível com a ideologia da Revolução Brasileira» (assim se auto intitulava a ditadura militar). E foi mais longe: visitou as redacções solicitando que não fizessem a cobertura do acontecimento, gesto que, denunciado, suscitou escândalo.
Os debates, moderados pelo Prof. Florestan Fernandes, uma das figuras mais prestigiadas da intelligentsia brasileira, foi um êxito. Registo que pelos antifascistas portugueses apresentaram comunicações os professores Vitor Ramos e Joaquim Barradas de Carvalho, Augusto Aragão, a estudante Maria Antónia Fiadeiro e eu.
Esses trabalhos foram mais tarde reunidos numa edição especial da Revista «Paz e Terra», publicada em Dezembro de 1969.
Quando ocorreu o 25 de Abril, alguns de nós tomamos a decisão de regressar imediatamente a Portugal.
Na Universidade de São Paulo, amigos brasileiros decidiram promover um Acto público para despedida dos exilados políticos que iam voltar à pátria.
A polícia política recebeu instruções para não proibir a iniciativa. A popularidade da Revolução portuguesa era enorme entre a juventude e o governo do general Medici não queria hostilizar o Movimento das Forças Armadas, o MFA.
Mas o DOPS tudo fez para sabotar a sessão. Horas antes do seu início levou para a sua sede o Professor Paulo Duarte, então com mais de 80 anos, a personalidade que deveria falar em nome da Universidade. Substituímo-lo pelo prof. Soares Amora, genro de Fidelino de Figueiredo e então catedrático de Literatura Portuguesa. O Acto foi presidido por um jovem brasileiro, Sylvio Band, que era então o proprietário «legal» do «Portugal Democrático».
A reitoria tinha cedido para o acto um anfiteatro onde mal caberiam 200 pessoas. Mas ocorreu uma situação não prevista.
Os estudantes compareceram em massa. A sessão teve de se realizar num pátio onde se concentraram mais de 4.000 jovens. E a Revolução Portuguesa e os exilados que ali a representavam foram aclamados numa atmosfera de entusiasmo.
A despedida dos exilados, pelo seu significado, acabou transformada num grande acontecimento político brasileiro.
Isso foi possível graças ao 25 de Abril, a Revolução desejada, pela qual tínhamos vivido e lutado.
É uma brevíssima síntese a que vos apresentei da luta travada no Brasil pelos antifascistas portugueses, quase toda ela nos anos mais duros da ditadura dos generais.
Quando hoje, transcorridas muitas décadas, recordo esses combates pela liberdade do povo português, cumpro um dever prestando comovida homenagem ao colectivo do «Portugal Democrático», jornal formalmente legal, mas produzido por uma organização clandestina. O Conselho de Redacção era formado, com uma excepção, por militantes do Partido Comunista Português. Durante anos, agimos como uma forca de batalha inesquecível. A equipa, de uma solidariedade granítica, tornando real a máxima «todos por um, um por todos», conseguiu fazer da camaradagem amizade. Na luta eles desenvolveram, como homens e revolucionários, as suas melhores potencialidades.
Sou hoje um dos poucos sobreviventes desse maravilhoso colectivo. Ele permanece no meu imaginário como confirmação de que, em circunstâncias excepcionais, o sonho do homem novo se torna quase realidade.
Grenoble, 25 de Abril de 2009
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