Prefácio a dois livros
de Ruy Luís Gomes sobre Teoria da Relatividade (A Relatividade: Origem,
evolução e tendências actuais; Teoria da Relatividade Restrita) republicados
num volume único pelas Edições do CMUP no âmbito das comemorações do centenário
de Ruy Luís Gomes em 2005.
De 19 a 28 de Abril de 1937, o matemático Ruy Luís
Gomes, então professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do
Porto realiza, nas instalações do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e a
convite do Núcleo de Matemática, Física e Química, um curso sobre Teoria da
Relatividade Restrita. Este curso seria publicado pelo Núcleo no ano seguinte e
é um dos textos que faz parte desta edição.
O Núcleo de Matemática, Física e Química fora fundado,
em 1936, por iniciativa de Arnaldo Peres de Carvalho, Herculano Amorim
Ferreira, Manuel Valadares, António da Silveira e Bento de Jesus Caraça. Todos
eles, excepto Bento Caraça, tinham feito a sua formação no estrangeiro. Peres
de Carvalho doutorou-se no Collège de France, Paris. Amorim Ferreira estudou no
Imperial College (Londres) e era professor catedrático na FCUL. Manuel
Valadares estudou no Institut du Radium e doutorou-se na Universidade (Paris).
Antóno da Silveira tinha estagiado no Collège de France e era professor
catedrático no IST. A formação do Núcleo assinala, assim, uma ruptura com o
passado científico português de isolamento interno e internacional e foi a
primeira tentativa de criar uma Escola de Ciência em moldes modernos no nosso
país, embora nunca tivesse chegado a dedicar-se verdadeiramente à promoção da
investigação científica.
Entretanto, em 1936, o matemático António Aniceto
Monteiro, tinha-se doutorado em Paris, sob a orientação de Maurice Fréchet, com
uma tese intitulada “Sur l’additivité des noyaux de Fredholm”. Regressado a
Portugal, imediatamente integra as actividades do Núcleo de que passa a ser um
dos elementos mais activos, conjuntamente com António da Silveira e Manuel
Valadares.
O Núcleo limitou-se essencialmente a ministrar cursos
de elevado nível, o primeiro dos quais foi iniciado em 16 de Novembro de 1936
por Bento de Jesus Caraça, sobre “Cálculo Vectorial”. A ideia era a de publicar
os cursos, o que só acabou por ser feito com os de Bento de Jesus Caraça, Ruy
Luís Gomes e Amorim Ferreira, em edições de muito boa qualidade. Embora o
fascismo lhe tivesse movido perseguições diversas, nomeadamente dificultando a
utilização das Universidades, sendo o IST o único a abrir a suas portas, o
Núcleo acabou por se dissolver por divergências internas em 1939.
Ficou a semente... E ela produziu os seus frutos até
1947, altura em que, como é sobejamente conhecido, o fascismo fez a última
grande vaga de expulsões que aniquilou quase por completo o movimento
científico português.
Entretanto, nos números 534, 535, 536 e
537, a Seara Nova publica semanalmente, entre 6 e 27 de Novembro de 1937, os
artigos “Mecânica clássica e mecânica relativista”, de Gago Coutinho, “dedicados
aos alunos do Física liceal”, e onde se propõe “voltar a atacar” a
Relatividade. Diz Gago Coutinho no primeiro deste artigos: “Julgava eu, pois,
que não teria de voltar a atacá-la (a Relatividade); mas o facto de há meses se
ter apresentado em Lisboa um professor universitário a fazer conferências sobre
a Relatividade Restrita – como há anos fez o professor Langevin –
provou-me que a chamada Mecânica Nova ainda conserva adeptos e que viria
a propósito renovar as minhas dúvidas, ou, objecções, a respeito desta Revolução
Científica”.
No nº 539 da Seara Nova o Núcleo de
Matemática, Física e Química publica uma nota em que protesta contra os artigos
de Gago Coutinho onde chama a atenção do Almirante e dos leitores da Seara Nova
para os pontos seguintes:
“1º Numa série de cursos de introdução à
Física Moderna não podia deixar de figurar a Teoria da Relatividade. Num livro
recente intitulado «La physique nouvelle et les quanta» (1937), o professor da
Sorbonne Louis de Broglie, laureado Nobel e um dos grandes obreiros da Física
Moderna, diz o seguinte: «Avant d’aborder l’étude du développement de nos
connaissances sur les quanta, il est impossible de ne pas consacrer un court
chapitre à la théorie de la relativité. Relativité et quanta sont les deux
piliers de la physique théorique contemporaine...» (pág. 82). E mais: «La
relativité restreinte a reçu de belles confirmations expérimentales...» (pág.
102). E o Sr. Almirante Gago Coutinho deve saber o que isto significa para
impor uma teoria física.
2º Este Núcleo aproveita a ocasião para
prestar pública homenagem ao Sr. Professor Ruy Luís Gomes pela elevação com que
tratou o assunto de que se encarregara, pela elegância e originalidade das suas
deduções matemáticas, e pelo agudo sentido físico e filosófico da sua exposição.
3º Finalmente este Núcleo considera grave
que o Sr. Almirante Gago Coutinho dedique os seus artigos aos alunos de Física
liceal. Dirigindo-se a quem tem forçosamente uma cultura reduzida e faculdades
críticas pouco desenvolvidas, o Sr. Almirante vai, possivelmente, com o
prestígio do seu nome feito em campo e assunto diferentes, criar a falsa
opinião de que a teoria da relatividade consiste num amontoado de absurdos,
contribuindo assim para desenvolver em jovens estudantes uma mentalidade de
desconfiança perante a ciência”.
Gago Coutinho responde no nº 540 da Seara
Nova explicando aí , num tom cordato, que apenas conhecia a Relatividade
Restrita de “folhetos de vulgarização, como os de Einstein, Langevin e
Metz”.
Por manifesto desejo de Gago Coutinho a
Seara Nova inicia depois a publicação de seis artigos de Ruy Luís Gomes com o
título “A relatividade – origem, evolução e tendências actuais”. Saem nos
números 541, 543, 545, 547, 550, 553 (de 25 de Dezembro de 1937, 8 e 22 de
Janeiro, 5 e 26 de Fevereiro e 19 de Março de 1938) e que são publicados em
1938, num único volume nos Cadernos Seara Nova, saindo a 2ª edição em 1943.
Houve mais uma edição, em 1969, que reproduzia a de 1943, inserida na
colectânea de textos de Ruy Luís Gomes “Problemas de investigação e história”.
Este é o outro dos dois textos que fazem parte desta edição publicada pelo
Centro de Matemática da Universidade do Porto, comemorativa do centenário de
Ruy Luís Gomes.
Refira-se ainda que, mesmo depois destas
publicações de 1937-1938, Gago Coutinho e Ruy Luís Gomes continuaram a trocar
alguma, e sempre amável, correspondência.
O curso desse Abril de 1937, relizado no IST, marcou,
o primeiro encontro entre três homens que viriam a ser os pilares dos
desenvolvimento do Movimento Matemático – António Aniceto Monteiro, Bento de
Jesus Caraça e Ruy Luís Gomes.
A influência de Bento de Jesus Caraça no meio cultural
e científico é bem conhecida. Dele afirmou Ruy Luís Gomes em 1948, ano da sua
morte:
“Na verdade, Bento Caraça pertenceu ainda a uma geração
que fez a sua própria educação, no domínio da Matemática, numa época em que as
nossas Escolas Superiores estavam inteiramente enformadas pelo velho e
desastroso conceito de que se pode ser um grande professor universitário sem
nunca se ter patenteado, na análise exaustiva de algum problema concreto, a garra
ou, pelo menos, o sentido de investigador.
(...)
Bento Caraça não foi, pois, um investigador, mas
superando o meio em que foi educado e lançando-se desde muito novo nas tarefas
de ensino, em breve se juntou aos que deram o primeiro passo para fazer
triunfar nas nossas Escolas Superiores uma nova concepção da vida
universitária.
(...)
Vencendo as suas próprias dificuldades e tirando delas
um ensinamento para facilitar a formação profissional da juventude, contribuiu
em larga medida para que a investigação se tornasse uma primeira realidade, e,
procedendo assim, deu um conteúdo real e progressivo à sua missão de educador.
(...)
Alinhando com aqueles que pretendem transformar as
nossas Universidades em Centros de Investigação e verdadeiras escolas de
trabalho, escolheu como primeiro valor, no domínio da sua actividade de
professor, a subordinação dos seus interesses imediatos a um interesse superior
– o da preparação profissional da juventude.
E sacrificando tudo, desde a cátedra, de que foi
afastado, até às exigências da sua saúde precária, aos grandes valores morais –
inteireza de carácter, sentimento de solidariedade e coerência de princípios –
deu-nos a todos a melhor lição da sua vida.
O seu exemplo pertence ao património moral da nossa
Pátria. O povo português nunca o esquecerá!”
A influência de António Aniceto Monteiro é menos
conhecida do que a de Bento de Jesus Caraça, sendo verdade que ela foi muito
importante na história do arranque do Movimento Matemático no que diz respeito
à investigação científica. Na verdade, António Aniceto Monteiro foi o primeiro
investigador português em matemática nos moldes em que actualmente se considera
a investigação científica e foi determinante a sua influência sobre Ruy Luís
Gomes, que, na altura, já era um investigador credenciado internacionalmente.
Este facto é confirmado por José Morgado em [JM]:
“As conferências realizadas em Lisboa, a convite do
Núcleo de Matemática, Física e Química, permitiram a Ruy Luís Gomes tomar
contacto com o trabalho de actualização e de formação de investigadores que
António Monteiro e os outros trabalhadores científicos do «Núcleo» estavam
iniciando. Daqui nasceu naturalmente uma colaboração estreita com António
Monteiro”.
Luís Neves Real também o corrobora em [LNR]:
“Porém, à volta de 1940, o encontro do Professor Ruy
Luís Gomes com o Doutor António Aniceto Monteiro permitiu-lhe conhecer de perto
um invulgaríssimo entusiasta da causa da investigação matemática em Portugal e
um método frutuoso de iniciar a nossa juventude no treino da pesquisa
científica, orientada em conformidade a um plano geral, que atribui, a cada
estudioso, uma tarefa própria”.
Tudo isto é também referido pelo próprio Ruy Luís
Gomes ao enumerar iniciativas em que António Monteiro teve um papel
determinante – além do Núcleo, há ainda a fundação da revista Portugaliae
Mathematica (1937), o Seminário de Análise Geral e a Gazeta de Matemática
(1939), o Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa e a Sociedade Portuguesa de
Matemática (1940) [RLG]:
“Estas realizações e os contactos directos que já
havíamos tido com António Monteiro traduziram-se em novos estímulos para a
nossa própria actividade, sempre dominada pelo desejo de criar no Porto uma
Escola de Matemática”.
Em nenhuma delas, excepto no caso da SPM, aparece o
nome do matemático portuense como fundador (embora nelas tivesse participado
com muito entusiasmo) provavelmente pela simples razão de que todas aconteceram
em Lisboa e o isolamento entre as duas cidades era real. Só a partir de 1940 se
dá, de facto, a “unificação” da actividade matemática em Portugal.
Antes dessa data havia no Porto, na Secção de
Matemática, dois centros de interesse polarizados um na Álgebra Moderna (em
torno de António Almeida Costa) e outro na Análise Real (em torno de Ruy Luís
Gomes). A este propósito, diz Ruy Luís Gomes:
“Era, porém, necessário avançar para a integração
daqueles dois centros de interesse num projecto de Escola de Matemática
e, para um tal objectivo foi decisiva a colaboração e a extraordinária
capacidade de formar discípulos do matemático António Aniceto Monteiro”.
Inspirado pelo exemplo que vinha do grupo de Monteiro,
a 11 de Outubro de 1941, Ruy Luís Gomes formula ao Prof. Celestino da Costa,
Presidente do IAC (Secção de Ciências), o pedido para a criação do Centro de
Estudos Matemáticos do Porto (CEMP). A 18 de Fevereiro de 1942 o IAC solicita
ao Director (Ruy Luís Gomes) do Centro de Estudos Matemáticos do Porto um plano
de trabalhos, podendo, assim considerar-se esta a data da fundação do CEMP. Ruy
Luís Gomes, além de ter sido fundador do Centro de Estudos Matemáticos do
Porto, foi seu director até 1947, altura em que foi demitido pelo fascismo.
Em 4 de Outubro de 1943, Aureliano de Mira Fernandes,
António Monteiro e Ruy Luís Gomes fundam a Junta de Investigação Matemática
(JIM), tendo os fundos para a JIM sido angariados numa campanha promovida por
António Luís Gomes, irmão de Ruy Luís Gomes. Em Dezembro de 1943, António
Aniceto Monteiro vai para o Porto, com a família, onde fica cerca um ano. Diz
António Aniceto Monteiro no seu curriculum:
“durante o período de 1938-43 todas as minhas funções
docentes e de investigação, foram desempenhadas sem remuneração; ganhei a vida
dando lições particulares e trabalhando num Serviço de Inventariação de
Bibliografia Científica existente em Portugal, organizado pelo IAC”.
Foi no Porto que António Monteiro teve a sua única
retribuição em Portugal, através da JIM, uma organização privada, como
investigador em matemática antes de 25 de Abril de 1974! Nunca chegou a ser
professor de uma universidade portuguesa!
Uma das iniciativas da JIM foi a organização nos anos
de 1944 e 1945 de palestras científicas lidas ao microfone da Rádio Club
Lusitânia, corajosamente cedido pelo proprietário, tendo sido oradores: Ruy
Luís Gomes, António Monteiro, Corino de Andrade, Branquinho de Oliveira,
Fernando Pinto Loureiro, José Antunues Serra, António Júdice, Armando de
Castro, Carlos Teixeira, Flávio Martins. Nada disto agradou ao regime. Uma das
consequências foi o encerramento, a seguir à sua palestra, de todos os clubes
de matemática que Monteiro tinha fundado em Lisboa, e essa foi apenas uma
pequena parte da perseguição política que o fascismo vinha intensificando
contra ele.
Desta forma, em 1945, António Aniceto Monteiro viu-se
obrigado a sair de Portugal, porque lhe foi vedada a entrada na carreira
académica, por razões políticas. Com recomendação de Albert Einstein, J. von
Neumann e Guido Beck obtém uma cátedra de Análise Superior no Rio de Janeiro e,
em 28 de Fevereiro, embarca para a capital do Brasil. Chega àquela cidade com
um contrato por quatro anos, ao fim dos quais, em virtude das suas firmes e
desassombradas posições políticas, o contrato não foi renovado por influência
da Embaixada de Portugal!
Em Julho de 1946, realiza-se o doutoramento de Alfredo
Pereira Gomes – o primeiro do CEMP – na Universidade do Porto, depois de ter
sido orientado por António Aniceto Monteiro, estando este já ausente. Em
Outubro desse ano, Alfredo Pereira Gomes é afastado da Universidade, por
decisão do Governo, alegadamente por “estar incurso no disposto do decreto-lei
nº 25317”, pretexto usado contra ele e, em geral, contra todos os outros
expulsos antes e depois dele. Pouco depois vai para Paris onde ingressa no
CNRS, sob o patrocínio de M. Fréchet e A. Denjoy, ficando em França até ao fim
de 1952.
Em 1950, vindo do Brasil, perseguido pelas autoridades
portuguesas, chega à Argentina, António Aniceto Monteiro, contratado pela
Universidad Nacional del Cuyo (sediada na cidade de
San Juan, província de Mendoza).
Em 6 de Janeiro de 1956, é criada a Universidad
Nacional del Sur, Bahía Blanca, Argentina, e António Aniceto Monteiro é
convidado a nela se incorporar. A Biblioteca do Instituto de Matemática leva
actualmente o seu nome, Biblioteca António Monteiro.
Depois de ter sido expulso em 1947, de ter sido
candidato à Presidência da República, depois de ter sido preso várias vezes,
uma das quais durante dois anos, Ruy Luís Gomes aceitou, em 1958, um convite
para ir trabalhar para a Universidade de Bahía Blanca onde reencontra o seu
grande amigo António Monteiro.
Ambos continuaram a sua actividade científica no
estrangeiro só regressando a Portugal (Monteiro permaneceu apenas dois anos)
após o 25 de Abril.
Esta é a breve e parcialíssima história destes dois
textos – vivamente actuais – que agora são publicados, homenageando a memória
do autor no seu centenário, e dos dois homens impulsionadores do Movimento
Matemático e do Centro de Estudos Matemáticos do Porto, antecessor do CMUP.
O povo português muito lhes deve e nunca os
esquecerá!
[EFS] E. Fernández Stacco: António A. Monteiro
(31/05/1907-29/10/80), Noticiero de la Unión Matemática Argentina (número
extraordinário ISSN: 1514-9595)
[JM] José Morgado: O Prof. Ruy Luís Gomes e o
Movimento Matemático Português. Separata dos “Anais da Faculdade de
Ciências do Porto”, Vol. LXVII – Fascs. 1º a 4º.
[LNR] Luís Neves Real: Nota acerca do Professor Ruy
Luís Gomes como professor universitário e cientista. Em “Ruy Luís Gomes –
um professor português no Recife”, Universidade Federal de Pernambuco, Recife
(1970), ou em “Ruy Luís Gomes – problemas de investigação e história”,
Editorial Inova, Porto (1969).
[RLG] Ruy Luís Gomes: Tentativas feitas nos anos 40
para criar no Porto uma Escola de Matemática, Boletim da SPM nº6, de
Outubro.